Aida Batista

Sãõ lágrimas de Iqbalh

 

 

Livre não sou, que nem a
própria vida mo consente
Miguel Torga

 

 

Chama-se Iqbalh, é proveniente do Bangladesh e vive entre nós, na cidade de Póvoa de Varzim. Sabendo que a comitiva de André Ventura andava por aquela zona, numa arruada, ganhou coragem para se aproximar dele e lhe falar. Queria perguntar-lhe, olhos nos olhos, a razão de o seu partido ter um discurso racista. Foi comovente ouvir um homem, desfeito em lágrimas, a queixar-se da sua condição de imigrante. De como teve de mandar embora a sua filha, já nascida em Portugal, acossado pelo medo da reação dos que, apontando o dedo, lhe gritavam na cara: imigrante, imigrante!

Iqbalh ainda não domina o português de forma fluente, mas é-lhe já suficiente para se fazer entender. E foi assim que confessou fazer tudo direitinho, insistindo no “fazer tudo direitinho”, como uma criança que se porta bem. Era isso que as palavras dele queriam dizer – que acata e cumpre as regras do nosso país.

Por ironia, a sua ocupação – aquela que lhe permite manter a família e contribuir com os descontos para a nossa segurança social – consiste em cortar cravos numa estufa. É provável que Iqbalh não saiba o valor simbólico dos cravos na revolução que este ano celebra 50 anos. Por isso, não se deve ter dado conta de que cada pé que corta deveria ser mais uma flor na lapela da sua liberdade de viver tranquilamente no país que escolheu para ser feliz. Mas percebeu que está rodeado de jardineiros muito zelosos deste jardim à beira-mar plantado, que não admite flores de cor diferente a destoar no conjunto do canteiro onde se semeiam ressentimentos.

Iqbalh foi apenas um rosto, uma voz entrecortada de lágrimas que, perante a comitiva e jornalistas, ousou falar em nome de tantas outras vozes silenciadas pela angústia de não poderem ser pessoas por inteiro.
Ventura ouviu, calou e, incomodado, abreviou o passo. A voz indignada com que tantas vezes brada contra outras situações ficou muda, sem uma palavra de conforto para com um pai que se viu obrigado a afastar a sua filha de um grupo incubador de ódios. Da sua comitiva, contudo, soltaram-se remoques perfeitamente audíveis:
– Viva Portugal! Parem de lhe dar palco! Ainda há portugueses neste país! Volta para a tua terra!

Ventura calou, calou a resposta que devia ter dado e não deu. Pior ainda foi não ter sabido calar nenhuma das vozes que, despudoradamente e mais uma vez, bradaram que este era o tipo de imigrante que não seria bem-vindo em Portugal. Ventura pecou por omissão, mas o seu silêncio falou bem alto, e disse tudo quanto o seu programa defende sobre a imigração.

Segundo dados do Banco de Portugal, em quatro anos o peso dos trabalhadores estrangeiros passou de 6% para 13%. Sabemos como a sua vinda tem estado a contribuir para um equilíbrio da nossa pirâmide demográfica, bem como para a sustentabilidade da nossa segurança social. Sabemos que o verão já chegou e, com ele, uma necessidade cada vez maior de mão de obra para a agricultura, restauração e setor do turismo. Sabemos que todas as estruturas do país parariam, num cenário em que os imigrantes, de um dia para o outro, deixassem de trabalhar.

O tecido humano do nosso país mudou. É uma realidade com que temos de aprender a viver e a conviver. Infelizmente, há quem continue a tapar o sol com uma peneira, esquecendo-se de que este quando nasce é para todos, por mais negras que sejam as nuvens de racismo com que o queiram esconder.
No Canadá, junho é o mês em que, com as mais diversas iniciativas, se celebra a Herança Portuguesa. Oxalá, possamos um dia celebrar junho com todas as comunidades aqui residentes. Tal gesto só nos engrandeceria. Como país e como povo!

Aida Batista/MS

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