Aida Batista

Os lugares onde sempre estarei

 

aida batista - milenio stadiu m

 

Que coisa morreu/ na minha infância/ e está lá a ser eu?
Manuel António Pina

 

Dezembro, mês da natividade de Jesus e da minha também. No dia 18, celebro mais um aniversário. São já muitos, mais do que esperava, marcada que fui pela perda de minha mãe com tanta vida para viver. Por isso, dia de aniversário é também tempo de balanço. Das memórias que guardo – uma ponte entre um tempo que demorava a envelhecer e outro que depressa envelhece. O que hoje é, amanhã deixa de ser, como se se tivesse perdido a cola que fixava os instantes dos nossos quotidianos.

Presa a um pêndulo que balança entre a infância e a entrada na velhice, o passado é uma película restaurada por lembranças: instantâneos vividos na primeira pessoa e outros contados por terceiros, a preencher os vazios que a memória não guardou.

Carimbado o lugar de nascimento, cedo me levaram para um outro mundo. E é desse que me lembro. Da sanzala na Massangarala, onde meu pai fez a primeira casa, porque era mais barato construir nos subúrbios; no quintal, uma bomba de água com uma alavanca movida à força da minha mão, pequena para tanto esforço. Das meninas e meninos negros com quem brincava e aprendi a falar “umbundu”. Do cheiro que emanava das cubatas onde se comia feijão com peixe frito em óleo de dendém. Do apito do comboio que vinha da Cassequel, carregado de cana de açúcar. Da ousadia de me escapulir com o meu irmão e, movida pela insensatez que não conhece perigos, aproximar-me dos vagões para, com um pau, puxar uma cana fora do alinhamento. Da chegada da minha avó materna, que fora morar para o lado oposto da cidade, mas a quem ensinei a andar de bicicleta, no caminho de terra que dava para o jardim dos viveiros. Do rio Cavaco que, na estação das chuvas, arrastava o caudal lamacento com que lavava as margens por onde passara. Da mancha de mar castanho do estuário, que só ganhava o azul cristalino quando chegava à Praia Morena, como se aproveitasse o percurso para se aperaltar e chegar limpinho à cidade. Da primeira bicicleta dada aos seis anos, para ir e vir das aulas no Colégio das Doroteias. Do choque entre os dois mundos: o meu e o das meninas ricas, filhas de comerciantes prósperos, donos de empresas e fazendeiros das plantações de sisal. Do desconforto de saber que nos separava uma fronteira erguida pelo valor metálico de um dos lados. Do elitismo praticado pelas freiras, que marcavam diferenças e protegiam o grupo das privilegiadas. Do portão de entrada, onde estava uma de plantão para receber as que, levadas de carro, eram entregues pelos pais, enquanto eu o atravessava sozinha na minha bicicleta. Da mudança para a cidade, decisão de meu pai, quando se assustou com o bilinguismo praticado entre mim e o meu irmão. Do despertar para o sentimento de pertença ao mundo urbano, cujo estatuto só foi atingido quando meu pai comprou o primeiro carro – uma carrinha Opel, que a prole há muito aumentara. Da ida para o Liceu e o primeiro contacto com turmas mistas, que a rigidez da minha educação impedia que tivesse amigos. Do vizinho da minha turma, Lagartixa de alcunha, que um dia me pediu emprestado o compêndio de latim. Da bofetada que levei por lhe ter permitido a entrada em casa para lho entregar. Do estalo e dor da pancada seca, que obrigou a cerrar os dentes e a engolir lágrimas de humilhação.

Interrompo a narrativa, porque 18 de dezembro, Dia Internacional das Migrações e do Migrante, é prioritário pensar em tantas outras lágrimas! Das que se movem carregando dores bem maiores, em busca de um lugar seguro onde pousar, para poderem chorar as perdas, destruição e morte, e que nunca secam.

Aida Batista/MS

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