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Portugal e o dever de cuidar da cultura portuguesa no Canadá

 

Ana Luísa Riquito, Cônsul-Geral de Portugal em Toronto e José Pedro Ferreira, Coordenador do Ensino do Português no Canadá, do Instituto Camões, cada um nas suas funções, têm em grande medida a responsabilidade de estabelecer a ponte que liga os portugueses, residentes neste país e Ontário em particular, ao seu país de origem.

O ensino da língua portuguesa é, como sabemos, crucial para manter nas novas gerações o gosto por Portugal e pela sua cultura, mas há muito mais trabalho que pode e deve ser feito. Desde logo dar a conhecer o Portugal do século XXI, mostrar todas as razões que existem para nos orgulharmos de sermos portugueses ou lusodescendentes. As diversas associações e clubes têm feito um esforço notável para não deixar morrer a chama, mas que tal haver também da parte de Portugal mais vontade de trazer a cultura portuguesa até ao Canadá? Que tal contribuir para um conhecimento do país menos ancorado no passado sem, no entanto, nunca o esquecer ou menosprezar?

Percebemos pelas respostas que nos foram dadas, a “quatro mãos’ (para utilizar uma expressão da própria Cônsul-Geral), que podemos abrir as portas à esperança de que, um dia, Portugal e as suas instâncias de poder passem a olhar de outra forma para a comunidade portuguesa residente no Canadá. Vamos esperar que sim e que com essa nova forma de nos verem, entendam que é também obrigação do Estado português assegurar que a cultura portuguesa e o amor a Portugal nunca se percam.

Milénio Stadium: Na sua opinião, que cultura portuguesa estamos a projetar e promover no Canadá? Será que estamos a dar a conhecer o Portugal de hoje?
Ana Luísa Riquito/José Pedro Ferreira: Portugal deve projetar-se internacionalmente e, portanto, também no Canadá, tanto na sua identidade, como na sua modernidade. O folclore tradicional, a gastronomia, os ídolos futebolísticos terão sempre lugar nas celebrações e festividades da comunidade portuguesa. Há decerto espaço para explorar um potencial subaproveitado em mostrar a inovação tecnológica, a cultura artística e literária contemporânea, a integração europeia do país e as conquistas socioeconómicas do Portugal dos últimos 50 anos, que se abriram com a transição para democracia, inaugurada pela Revolução do 25 de abril

MS: Para quem trabalham as associações e clubes da comunidade portuguesa? Para os canadianos e outras etnias ou só para os portugueses?
ALR/JPF: As associações e clubes da comunidade portuguesa são organizações sem fins lucrativos, que não têm por finalidade a acumulação de capital dos seus diretores. Antes se caracterizam por reunirem um universo de portuguesas e portugueses que trabalham, de forma voluntária, na prossecução de um mesmo objetivo, cultural, social, filantrópico. O seu património maior são os próprios associados.
Historicamente, serviram sobretudo como centros de preservação cultural, de socialização e de apoio à integração na sociedade de acolhimento dos portugueses expatriados. Com grande generosidade, serviram muitas – tantas! – vezes de amparo aos nossos concidadãos, em situações de dificuldade, por enfrentarem momentos de desemprego, perdas de familiares à distância, carência económica, problemas financeiros… Continuam a promover a atribuição de bolsas de estudo aos jovens da nossa comunidade, num reconhecimento da importância da educação. Além disso, hoje, apresentam grande potencial como pontes culturais que permitam aos canadianos de outras comunidades conhecer e apreciar a cultura portuguesa. O mesmo se diga dos órgãos de comunicação social portugueses no Canadá que têm nisso um papel cimeiro a desempenhar: a abertura à juventude da 2ª e 3ª gerações de luso-descendentes, o pluralismo e a diversidade dos conteúdos editoriais e das colunas de opinião, a atenção cuidada às dinâmicas de intercâmbio entre a sociedade civil portuguesa e a canadiana, no plano empresarial, cultural, universitário, científico, político e do turismo, potenciarão que se fale (e escreva) tanto “para dentro” (da comunidade), como “para fora”.

MS: O que pensa da Parada de Portugal tal como tem saído nos últimos tempos? Acha que representa realmente a cultura portuguesa ou poderia apresentar-se de outra forma?
ALR/JPF: Uma “Parada” é uma “Parada” é uma “Parada”… ou seja, é um evento público onde grupos de pessoas, frequentemente organizados em carros alegóricos ou a pé, desfilam por uma rota específica, geralmente numa rua ou avenida principal. Uma Parada inclui sempre e várias formas de entretenimento, como bandas de música, dançarinos, acrobatas, personagens de fantasia e veículos decorados.
A Parada de Portugal tem sido uma vitrina vibrante das tradições culturais portuguesas, exibindo música, dança, trajes típicos e outras expressões culturais orgânicas, com muita alegria e boa energia. A Parada já evoluiu: este ano, ouviram-se sotaques luso-canadianos, luso-brasileiros, quebequenses e outros. Mais: a comunidade angolana desfilou, pela primeira vez, connosco, num momento da nossa história comum, em que a memória pós-colonial começa – enfim! – a admitir a autocrítica de Portugal relativamente ao seu passado. Nesse troço luso-angolano da Parada de Portugal em Toronto, vimos um símbolo do país moderno que queremos projetar, caracterizado pela interculturalidade, a igualdade de oportunidades e o bom acolhimento de tod@s.
Há decerto margem para que a Parada inclua mais elementos contemporâneos, como música moderna, arte digital e moda, que representem o Portugal dinâmico de hoje. Mas, a participação de inúmeros políticos proeminentes do Ontário atesta bem a relevância desta celebração no espaço público, a céu aberto.

MS: A língua portuguesa é uma importante ferramenta de ligação entre os portugueses que residem fora de Portugal e as suas raízes. Como avalia o trabalho de ensino do português que tem sido desenvolvido na Grande Área de Toronto?
ALR/JPF: Apenas no Ontário, há 27 localidades em que se regista uma oferta de ensino da Língua Portuguesa, entre Escolas públicas canadianas e escolas comunitárias, numa rede justamente apoiada pelo Instituto Camões. Este apoio passa, anualmente, pela disponibilização gratuita de manuais escolares a alunos e professores, pela oferta de bibliotecas escolares, pela visita de escritores infantojuvenis para promover a leitura em português, pela atribuição de equipamentos eletrónicos para apoiar o ensino e a aprendizagem, pela certificação das aprendizagens dos alunos e pela formação de professores, por exemplo.
É de louvar o empenho das famílias que inscrevem os seus jovens nas escolas, bem como o das professoras que, com grande dedicação e amor à camisola, mantêm vivo o interesse pelo português. Ao nível universitário, a cooperação com as Universidade de Toronto, onde funciona o Centro da Língua Portuguesa, e a Universidade de York, vai também refletindo os novos percursos e objetivos académicos e profissionais dos estudantes, com a emergência de cursos diferenciados, como o de Português para os negócios.
Trata-se de uma tarefa desafiante, quer porque a hegemonia do inglês gera um falso conforto nas jovens gerações, quer porque o português compete quase sempre diretamente com outras atividades extracurriculares. Das famílias aos professores, das associações às instituições, passando pelos órgãos de comunicação social, todos temos um papel fundamental na manutenção e promoção da língua portuguesa no Canadá, que passa essencialmente pela valorização do seu uso diário, sempre que possível, junto de todos os grupos geracionais.

MS: O que poderia ser feito para melhorar? Como se poderá cativar pais e filhos?
ALR/JPF: Em primeiro lugar, é necessária uma maior sensibilização para o valor da educação e da escola. A par dessa consciencialização para a importância da prossecução dos estudos, como fator de permeabilidade social, para uma vida melhor, é imprescindível recordar às famílias que uma educação bilingue constitui uma enorme vantagem cognitiva, cultural, mas também económica. O português é a 5ª língua mais falada do mundo: abre aos jovens um mercado de emprego vasto, num mundo que é globalizado e em que as aptidões linguísticas, na era da “hiper-comunicação”, são mais cruciais do que nunca. Para melhorar o ensino da língua portuguesa, teremos de continuar a investir em formação de professores, a desenvolver materiais didáticos modernos e a utilizar as novas tecnologias educativas. Programas extracurriculares, como clubes de leitura, oficinas culturais e intercâmbios com escolas em Portugal, podem tornar a aprendizagem mais atraente. Envolver os pais através de eventos comunitários e iniciativas que promovam o uso do português em casa também seria benéfico.

MS: O que Portugal gostaria que os seus emigrantes no Canadá mostrassem do país e do povo que somos hoje?
ALR/JPF: Os emigrantes portugueses no Canadá vão saber continuar a promover a diversidade e a modernidade do país. Isso inclui destacar a inovação tecnológica, a arte contemporânea, a literatura moderna, as conquistas científicas, e sociopolíticas. É importante mostrar que Portugal é um país dinâmico, com uma rica herança cultural, mas também com um olhar virado para o futuro.
Aqui ficam algumas pistas, com exemplos, para apresentar o Portugal de hoje:
Socialmente, Portugal tem demonstrado um compromisso com a inclusão e a igualdade. O país tem sido pioneiro na implementação de políticas progressistas em áreas como a saúde, os direitos LGBTQ+, a igualdade de género e a integração de imigrantes.
Ecologicamente, trata-se também de um país empenhado no cumprimento do Green Deal da União Europeia, com metas ambiciosas para alcançar a neutralidade carbónica, e um extraordinário potencial na economia do hidrogénio verde, baseado em fontes renováveis de energia.
Científica e tecnologicamente, Portugal tem investido significativamente, posicionando-se como um centro emergente de inovação na Europa. Um exemplo notável é o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), que realiza pesquisas de ponta em áreas como biomedicina e genética. Outro: o Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto (CEiiA) em Matosinhos destaca-se pelo seu trabalho em mobilidade sustentável e tecnologias aeroespaciais. O CEiiA tem colaborado com empresas globais para desenvolver veículos elétricos e soluções inovadoras para a indústria aeronáutica.
A startup portuguesa Feedzai é um exemplo brilhante de inovação tecnológica com impacto global. Especializada em inteligência artificial para a deteção de fraudes financeiras, a empresa tem atraído investimentos significativos e estabelecido parcerias com grandes instituições financeiras ao redor do mundo. Outro exemplo é a Corticeira Amorim, líder mundial na indústria de cortiça, que tem utilizado tecnologias avançadas para inovar no uso deste material sustentável, desde a produção de rolhas até a criação de produtos de design e soluções de construção ecológica.
Culturalmente, Portugal tem-se reinventado, promovendo tanto o seu património tradicional quanto as expressões artísticas contemporâneas. O Festival Internacional de Cinema de Lisboa (IndieLisboa) é um excelente exemplo disso, atraindo cineastas e entusiastas de todo o mundo para celebrar a diversidade do cinema independente. O cinema português contemporâneo tem granjeado reconhecimento global graças à originalidade e profundidade de suas produções. Este renascimento tem sido liderado por cineastas que exploram temas universais, pelo prisma de uma lente culturalmente intimista. Pedro Costa, por exemplo, é um dos mais aclamados cineastas portugueses contemporâneos. Filmes como “Vitalina Varela” (2019), têm recebido prémios em festivais internacionais, incluindo o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno. Costa é conhecido por seu estilo visual austero e por dar voz a comunidades marginalizadas em Lisboa.
Outro cineasta de destaque é Miguel Gomes, cuja trilogia “As Mil e Uma Noites” (2015) mistura realidade e fantasia para abordar a crise económica em Portugal. Gomes é aclamado pela sua criatividade narrativa e pela capacidade de conectar histórias pessoais a contextos políticos mais amplos e acaba de ganhar um grande prémio em Cannes.
João Canijo, com as suas docuficções, já ganhou um Urso de Prata na Berlinale e João Salaviza também merece menção por, com a sua curta-metragem, “Arena” (Palma de Ouro em Cannes, 2009), e a sua longa “Montanha” (2015) retratar a juventude portuguesa com sensibilidade e uma estética contemporânea.
E o que dizer das mulheres realizadoras portuguesas: Margarida Cardoso, Susana Sousa-Dias, Cláudia Varejão: GRANDES! Para quando um festival de cinema português em Toronto, organizado pela comunidade?
A arquitetura contemporânea portuguesa tem sido igualmente inovadora, combinando tradições locais com soluções modernas e sustentáveis. Portugal é lar de alguns dos arquitetos mais respeitados do mundo, cujas obras são apreciadas tanto em casa quanto internacionalmente.
Álvaro Siza Vieira, laureado com o Pritzker em 1992, continua a ser uma figura central na arquitetura portuguesa. Suas obras, como o Museu de Serralves no Porto, exemplificam uma abordagem minimalista que respeita o contexto histórico e natural.
Eduardo Souto de Moura, outro Pritzker (2011), é conhecido por projetos que combinam funcionalidade com um sentido profundo de lugar. Um exemplo notável é a Casa das Histórias Paula Rego em Cascais, que se destaca pela sua forma escultórica e integração com o ambiente circundante.
Mais recentemente, João Luís Carrilho da Graça tem ganho destaque com projetos como o Terminal de Cruzeiros de Lisboa, caracterizado pela clareza formal e uma relação harmoniosa com o entorno.

MS: Acha que poderia haver interesse em se fazer um trabalho conjunto entre a comunidade portuguesa aqui residente e as diversas agências governamentais portuguesas responsáveis pela promoção de Portugal no mundo?
ALR/JPF: Já há muito trabalho conjunto com entidades públicas portuguesas, como, por exemplo, o Instituto Camões, que já citámos, mas também com a AICEP (Agência de Investimento e Comércio Externo de Portugal) e o Turismo de Portugal, ambos com representantes no Canadá, sediados em Toronto. Recentemente, o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, em visita oficial a Toronto, homologou dois contratos de associação, respetivamente com a Casa do Alentejo e a Luso-Canadian Charitable Society, cimentando o apoio do Estado português à nossa diáspora no Canadá.
Há pouco mais de uma semana, a Universidade de Coimbra e a Porto Business School enviaram missões a Toronto, dando a conhecer aos jovens luso-canadianos, potenciais candidatos ao ensino superior nos seus diversos ciclos – Licenciatura, Mestrado, Doutoramento – as oportunidades de prossecução dos seus estudos em Portugal.
Há um “Acordo de Mobilidade Jovem” entre Portugal e o Canadá, subaproveitado, cujo potencial as empresas de portugueses e luso-canadianas aqui poderão impulsionar… E, para quando estágios nos OCS portugueses de Toronto destinados aos jovens das escolas de jornalismo e comunicação portuguesas?
Mãos à obra… Tod@s somos poucos, para o muito que ainda há a fazer. Mas, “tudo vale a pena, quando a alma não é pequena.”

MB/MS

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