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“Celebrar os pioneiros e a trajetória dos portugueses no Canadá é celebrar também o lado positivo da nossa emigração” – Maria João Dodman

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“A minha pátria é a minha língua portuguesa” – uma frase icónica de Fernando Pessoa (do seu heterónimo Bernardo Soares) e tantas vezes usada fora de contexto, pode servir de linha condutora pela conversa que tivemos com Maria João Dodman, para quem é importante que a cultura e a língua falada e escrita sejam encaradas como algo em permanente evolução e até mutação. Com sotaque, sem sotaque, com mais ou menos mistura com outras línguas e culturas é assim que se fortalece e mantém viva a língua e a cultura portuguesa.

O futuro, segundo a professora associada da York University, passa pelo fortalecer dos laços afetivos que ligam as gerações mais novas ao país dos seus antecessores. E esse afeto desenvolve-se tanto mais quanto mais se der a conhecer o Portugal moderno.

Maria João Dodman faz parte do Comité Comunidade que está envolvido na preparação das celebrações dos 70 anos da imigração portuguesa no Canadá, por considerar ser um dever cívico e afetivo contribuir, de algum modo, para que seja prestada a devida homenagem a quem chegou primeiro e que, com muitas dificuldades, conseguiram vencer e passar testemunho a outros. Ligando-se entre si, também através da língua. A tal “pátria” a que se refere Pessoa e pode ser encontrada em cada canto deste mundo, em cada pessoa que fale português.
Milénio Stadium: É sabido que para garantir a identidade de um povo ou de uma comunidade é fundamental que se preserve a cultura e em particular a língua.

Maria João DodmanMS: 70 anos depois da chegada ao Canadá dos primeiros imigrantes portugueses (oficiais) que balanço se pode fazer do trabalho desenvolvido nesta área?
Maria João Dodman: De certa forma discordo desta “sabedoria.” A cultura de qualquer povo não é estática, mas sim evolui com os tempos, permitindo até o desenvolvimento de novas práticas, novos conhecimentos, novas aberturas ao mundo que surgem através dos contatos entre povos. Já são poucas as culturas que vivem em completo isolamento. Depois existem aquelas práticas retrógradas (baseadas noutros tempos) que se transformam de acordo com o progresso e a implementação de práticas mais inclusivas, democráticas, etc. A língua também se transforma. No entanto, estas transformações não surgem naturalmente numa comunidade imigrante pois não vivemos o dia a dia da nação deixada atrás. Claro que que as redes sociais permitem uma maior aproximação, um acompanhamento mais abrangente das mudanças que têm ocorrido em Portugal nas últimas décadas. Mas o Portugal moderno não é o Portugal dos mais idosos, nem daqueles que aqui nasceram e que não têm acompanhado essas mudanças. Penso que será difícil manter a língua – apesar de todos sabermos que falar mais de uma língua é uma vantagem pessoal e profissional – mas é difícil remar contra a corrente que eleva o inglês como língua franca (algo que afeta a maior parte das línguas comunitárias e até o francês que é língua nacional; isto para querer dizer que não é um problema apenas nosso). No entanto, creio que a comunidade tem conseguido passar de geração a geração o laço afetivo a Portugal. Penso que essa afeição será muito mais importante no futuro do que a língua. Claro que penso, e que quero deixar bem claro, que sem a criação de clubes e associações, sem as escolas comunitárias, sem os esforços dos primeiros imigrantes, não tínhamos chegado aqui.

MS: Há um crescente receio de que as mais novas gerações de lusodescendentes estejam já demasiado desligadas das suas raízes. Qual é a sua perceção? Se achar que esta é uma realidade… o que considera se pode fazer para os atrair?
MJD: Claro, mas é normal não terem, nem quererem ter a mesma relação com o país de origem dos nossos imigrantes. Para atrair os jovens penso que temos de começar a criar eventos que sejam mais atrativos para eles; jantares longos e dispendiosos, celebrações antiquadas e até anacrónicas também não é por aí. É fundamental incluir os jovens nestas discussões para que haja diálogo e aprendizagem. Viajar e poder apreciar a cultura atual também seria algo útil para os jovens, especialmente aqueles nascidos aqui e cuja relação com Portugal tem sido mediada pela família já há muito imigrada e com pouca interação com o Portugal moderno.

MS: É costume dizer-se que os portugueses espalhados pelo mundo são os maiores embaixadores de Portugal – no sentido da promoção do que somos enquanto povo. Concorda?
MJD: Sim e não. Sim, quando representamos o nosso lado hospitaleiro, os nossos ideais democráticos, a nossa abertura. Não, quando reproduzimos discursos colonialistas, de Portugal “descobrir” o mundo, quando nos isolamos dos outros povos com afinidades lusófonas. Penso que os imigrantes portugueses espalhados pelo mundo deveriam refletir menos sobre a relação com Portugal e mais sobre o ser migrante, sobre a identidade hífen, a dualidade de vivência entre dois mundos ou mais e saber pertencer a todos. Não celebramos suficientemente a nossa identidade migrante. Somos seres híbridos e devemos ter orgulho desse aspeto da nossa identidade (até a nossa língua híbrida deveria ser mais celebrada!).

MS: Na sua perspetiva, que importância tem a celebração dos 70 anos de presença portuguesa no Canadá? O que a motivou a fazer parte do Comité Comunidade?
MJD: É essencial termos esta celebração porque não só já são poucos os nossos pioneiros e a imigração em si, mesmo a chamada imigração voluntária, é um processo muito doloroso. Honremos aqueles que se encontram connosco; valorizemos esses primeiros esforços. Celebrar os pioneiros e a trajetória dos portugueses no Canadá é celebrar também o lado positivo da nossa emigração, a nossa reinvenção, a nossa hibridez, a nossa contribuição para o bem-estar e multiculturalismo deste país e que nos pertence também. Celebrar é uma forma de criarmos esse “barulho” positivo e dar mais visibilidade à nossa comunidade. Este é um país de imigrantes; celebrar a nossa comunidade imigrante é também uma celebração de todos aqueles que aqui vivem e que representam o mundo connosco. Para além disso, os nossos imigrantes fizeram milagres neste país. Gente que veio de muito pouco, sem educação, geralmente, e sem preparação e aqui construíram redes sociais, formaram famílias, negócios. Fizeram milagres do nada. Sinto uma grande admiração por todos eles e sinto-me inspirada pelas histórias de vida dos nossos imigrantes. Aceitei fazer parte porque não só é um comité de gente diversa e interessada (e gosto de aprender com pessoas que têm outras perspetivas), mas por achar que tenho um dever cívico e afetivo de contribuir.

MS: Considera que a comunidade está unida em torno desta celebração?
MJD: Sim, penso que podemos ter divergências e ver as coisas de maneira muito diferente, mas há um objetivo comum que julgo que todos concordam e que tem a ver com o bem-estar coletivo, com a nossa afirmação como comunidade. A celebração é uma valorização da nossa história no Canadá.

Madalena Balça/MS

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