Temas de Capa

Às vezes basta esticar uma mão…

 

A sociedade em que vivemos não ajuda nada a fazer frente a um problema que se torna cada vez mais evidente – o facto de os homens terem ainda muita dificuldade em reconhecer fraquezas ou fragilidades emocionais.

Priorizamos e valorizamos as “pessoas fortes”. Em muitas circunstâncias, a todos nós, mulheres e homens, é-nos transmitida a ideia de que a razão deve sobrepor-se ao sentimento, de tal modo que devemos camuflar ou esconder o que sentimos. Devemos mostrar que somos valentes e capazes de aguentar e ultrapassar tudo o que é obstáculo que se apresenta na nossa frente. Foi assim que nos ensinaram desde pequeninos, a todos, mas esta mensagem sempre foi transmitida com muito maior incidência, e porque não dizer violência, aos meninos/homens. Porque se trata de uma verdadeira violência dizer-se a um filho ou educando que não pode mostrar-se fraco, nem pensar em chorar ou mostrar-se triste, nada de mostrar vulnerabilidades ou necessidade de carinho. A nossa personalidade é construída por camadas, muitas vezes mimetizando o que os nossos pais fazem ou transmitem. Quando, ao longo de vários anos, os rapazes vão ouvindo que não devem chorar, não devem expor os sentimentos, estão a construir-se adultos cheios de vazios emocionais, ou mesmo sem qualquer consciência das suas próprias emoções. E o que acaba por acontecer é que muitos homens acabam por reprimir as suas emoções. Nunca mostram tristeza, medo, culpa, vergonha, saudade, carência, ressentimento ou até amor.
Todo este tapar do que se sente, pode acabar por se transformar em doenças do foro da saúde mental, como é o caso da depressão, ansiedade e muitas outras. Existem diversos estudos que apontam para o facto de as mulheres procurarem mais facilmente apoio psicológico do que os homens.

Esta incapacidade ou falta de vontade em procurar ajuda, impulsionadas pelo estigma social, podem prejudicar a própria saúde física e mental dos homens. É um equívoco considerar que as mulheres sofrem mais de doenças psicológicas baseando-se na procura da ajuda. Muitas vezes os homens sofrem até mais, mas em silêncio… Como podemos facilmente concluir, lendo estas entrevistas com dois profissionais altamente qualificados no tratamento de problemas de saúde mental, é muito importante que cada vez mais se normalize a ideia de que as pessoas mais corajosas são aquelas que se mostram imperfeitas e até inseguras perante o mundo. Todos nós podemos e devemos contribuir para ajudar os homens a ultrapassar este estigma social que os prende a uma ideia de força que muitas vezes não sentem, nem têm. Todos nós podemos e devemos, como nos explicam Michael Mak, Staff Psychiatrist do CAMH e Tiago Souza, psicoterapeuta, contribuir para ajudar a proteger e tratar a saúde mental dos homens. Às vezes basta esticar uma mão…
MB/MS

 

Michael Mak MD FRCPC – Staff Psychiatrist, Centre for Addiction and Mental

Milénio Stadium: 1 em cada 8 homens declara ter sintomas de problemas de saúde mental, em comparação com 1 em cada 5 mulheres. O que explica esta maior prevalência de problemas de saúde mental nas mulheres?
Michael Mak: De acordo com o Inquérito sobre a Morbilidade Psiquiátrica dos Adultos realizado no Reino Unido em 2014, 1 em cada 8 homens referiu ter tido sintomas de problemas de saúde mental, em comparação com 1 em cada 5 mulheres, o que indica uma maior prevalência de queixas de saúde mental nas mulheres.
Esta diferença nas taxas comunicadas pode ser parcialmente atribuível a diferenças biológicas, como as diferenças na forma como as hormonas, em particular as relacionadas com os ciclos reprodutivos, podem influenciar o humor e os estados emocionais. Podem existir diferenças socioculturais na forma como homens e mulheres acedem aos cuidados de saúde. Por exemplo, alguns homens podem subnotificar os seus sintomas devido ao estigma associado à expressão de vulnerabilidade ou de problemas de saúde mental.

MS: 40% dos homens não falam com ninguém sobre a sua saúde mental. Quais são as principais razões para este facto?
MM: Um inquérito realizado no Reino Unido pela Priory Healthcare revelou que uma percentagem substancial de homens nunca falou com ninguém sobre a sua saúde mental. Isto pode dever-se ao facto de os homens terem tendência a subnotificar os problemas de saúde mental devido ao estigma associado à expressão de vulnerabilidade ou ao próprio facto de terem problemas de saúde mental.
Embora os tempos estejam a mudar, alguns homens sentem que é embaraçoso admitir sintomas de saúde mental ou que devem resolver esses problemas sozinhos. Outros podem sentir que isso os faz “parecer fracos”.

MS: Estima-se que cerca de 77% dos homens já sofreram de sintomas de problemas de saúde mental comuns, como ansiedade, stress ou depressão. Podemos dizer que muitos deles nunca recebem tratamento ou reconhecem que têm um problema?
MM: Alguns homens que sofrem de sintomas de saúde mental não comunicaram ou não procuraram ajuda pelas razões acima enumeradas.
Para evitar o sub-diagnóstico e o sub-tratamento, os profissionais de saúde podem querer permitir uma maior concentração e profundidade na avaliação das queixas de saúde mental entre os géneros.

MS: Muitas crianças de hoje ainda crescem a ouvir alguém mais velho dizer: “um homem não chora”. Até que ponto é que isto pode afetar a saúde mental no futuro?
MM: Um jovem em sofrimento emocional, a quem é dito que não deve chorar por causa do seu género, pode correr um risco maior de desenvolver problemas de saúde mental no futuro. Este tipo de comentários não só conduz a estereótipos de género pouco saudáveis, como também pode invalidar a própria experiência emocional da pessoa, conduzindo a um maior sofrimento. Por último, isto pode fazer com que os jovens não peçam ajuda quando necessário mais tarde na vida.

MS: O que explica o facto de haver mais mulheres que tentam o suicídio e mais homens que o concluem?
MM: Mais de 75% dos suicídios envolvem homens, mas as mulheres tentam o suicídio 3 a 4 vezes mais frequentemente. Os homens podem escolher vias de automutilação com maior risco de letalidade (por exemplo, armas de fogo, enforcamento ou envenenamento por CO). As mulheres têm geralmente maiores taxas de depressão e ansiedade do que os homens, o que pode levar a taxas mais elevadas de tentativas de suicídio, mas com meios que são geralmente menos letais do que os homens.

MS: Os dados mais recentes sobre a saúde mental dos homens no Canadá seguem a tendência registada em estimativas mais globais?
MM: Os dados recentes sobre a saúde mental dos homens no Canadá indicam que o país enfrenta tendências semelhantes às observadas a nível mundial.
Mais uma vez, os homens são responsáveis por uma proporção significativa das mortes por suicídio no Canadá, com cerca de 75% das aproximadamente 4.000 mortes anuais por suicídio sendo do sexo masculino. Esta tendência tem sido consistente ao longo das últimas quatro décadas, realçando o grave impacto dos problemas de saúde mental entre os homens. Os homens também apresentam taxas mais elevadas de perturbações relacionadas com o consumo de substâncias do que as mulheres, enquanto estas tendem a apresentar taxas mais elevadas de perturbações do humor e da ansiedade. De acordo com as observações globais, é menos provável que os homens procurem ajuda para problemas de saúde mental, o que pode exacerbar a gravidade dessas condições. Felizmente, existem organizações que se ocupam da saúde mental dos homens, como a Movember.

MS: O que pode e deve ser feito para proteger e tratar a saúde mental dos homens?
MM: As campanhas de saúde pública podem ter como objetivo reduzir o estigma associado aos problemas de saúde mental dos homens. Isto pode ser conseguido através da educação e da promoção de narrativas positivas sobre a procura de ajuda para problemas de saúde mental. Aumentar a literacia em saúde mental entre os homens pode permitir-lhes reconhecer os sintomas e procurar uma intervenção precoce.
Programas educacionais em escolas, locais de trabalho e centros comunitários podem desempenhar um papel crucial. A implementação de programas de saúde mental na comunidade e nos locais de trabalho pode ajudar a abordar precocemente o stress e os problemas de saúde mental. Estes programas podem envolver formação em gestão do stress, dias de saúde mental e acesso a serviços de aconselhamento. Incentivar grupos de apoio de pares, onde os homens podem partilhar as suas experiências na procura de ajuda para problemas de saúde mental e apoiarem-se mutuamente, pode ser útil.

 

 

Tiago Souza – Psicoterapeuta

Milénio Stadium: 1 em cada 8 homens declara ter sintomas de problemas de saúde mental, em comparação com 1 em cada 5 mulheres. O que explica esta maior prevalência de problemas de saúde mental nas mulheres?
Tiago Souza: Vou iniciar com alguns jargões que parecem frívolos, mas não o são: homens são seres humanos, sentem, choram e vivem uma vida emocional complexa. Isso dito, homens historicamente não aprendem a procurar ajuda para lidar com questões de saúde mental. No entanto, esses problemas, quando não cuidados, levam a muitos outros problemas como comportamentos de risco no trânsito e em casa, abuso de substâncias, violência e suicídio, que tragicamente é muito mais prevalente em homens do que mulheres em escala mundial. Mesmo que timidamente, nossa sociedade está tentando mudar este cenário, não apenas criminalizando os comportamentos de risco dos homens, mas entendendo que são sintomas de problemas de saúde mental e uma questão social ligada a visão de homem que nossa sociedade reforça, mas que continua a adoecer homens.

MS: 40% dos homens não falam com ninguém sobre a sua saúde mental. Quais são as principais razões para este facto?
TS: As culturas ocidentais, em especial, e mesmo algumas asiáticas criaram a visão de que o homem é o provedor, é reconhecido pelo intelecto, lida com problemas de maneira objetiva e pragmática, e não perde tempo com matérias emocionais. Na verdade, este é um tabu histórico que persegue os homens, principalmente em relação a saúde mental. Homens não são educados ou encorajados a dialogar sobre suas emoções, desde criança. Expressão de tristeza, por exemplo, é vista como fraqueza. E expectativas em torno da performance masculina na escola, profissão, esportes e mesmo nos relacionamentos românticos são muitas vezes irreais e idealizadas. Quando confrontados com sua realidade vulnerável, emocional e sendo falhos, homens não sabem como lidar, ou para que pedir ajuda. A pressão para manter um emprego e ser provedor, a vergonha de falhar, o medo de ser ridicularizado e a falta de quem os escutem continuam a ser os maiores inimigos dos homens que precisam de ajuda. Em uma palavra, o estigma.

MS: Estima-se que cerca de 77% dos homens já sofreram de sintomas de problemas de saúde mental comuns, como ansiedade, stress ou depressão. Podemos dizer que muitos deles nunca recebem tratamento ou reconhecem que têm um problema?
TS: Exatamente. Muitos são os fatores, incluindo a falta de reconhecimento de que precisam de ajuda, o medo de serem julgados fracos e incapazes, e a falta de conhecimento sobre os benefícios de se conversar sobre as questões emocionais, relacionais e íntimas. Espera-se, ainda neste nosso século, que homens tenham todas as respostas, engulam suas mágoas e mostrem sua masculinidade reprimindo emoções que consideram fraqueza. Desde cedo somos educados a não lidar com nossos conflitos emocionais. Minha geração, a dos chamados geração X, é uma das primeiras se não a primeira a aprender que nossa vida emocional é parte integral de nossas existências e merece tanto cuidado quanto nossa saúde física.

MS: Muitas crianças de hoje ainda crescem a ouvir alguém mais velho dizer: “um homem não chora”. Até que ponto é que isto pode afetar a saúde mental no futuro?
TS: Isso é uma das narrativas mais nocivas para as crianças. No seu desenvolvimento, as crianças recebem rótulos e qualidades, que são esperadas e reconhecidas pelos adultos. Quanto mais um adulto repete que meninos não choram, isso vira uma expectativa. Assim, tanto meninos como meninas procuram seguir essa narrativa, no intuito de serem reconhecidas e aceitas pelos adultos. Assim começam o julgamento, a ridicularização e mesmo punição quando esses meninos choram ou simplesmente procuram ajuda por estarem tristes, com medo ou confusos. Não apenas desde cedo eles começam a reprimir suas emoções, mas também começam a repetir essa narrativa socialmente, na escola e na família.

MS: O que explica o facto de os homens terem 4 vezes mais pensamentos suicidas do que as mulheres?
TS: Um dos fatores mais comuns são a falta de comunicação, principalmente a conversa franca e direta sobre saúde mental, as altas expectativas em relação a como homens devem se comportar e performar, e emoções em geral. A falta de diálogo nos leva a considerar essas expectativas e emoções ameaçadoras, a ponto de não encontrarmos outra saída ou solução, mas acabar com o sofrimento de maneira extrema. E como essa falta de diálogo ainda ocorre nas famílias, na media, na sociedade e mesmo no círculo das profissões de saúde, muitos homens não aprendem que ajuda existe, está disponível e salva vidas. Não podemos esquecer que expectativas em relação aos homens contribuem para reconhecermos a saúde mental masculina como um problema de saúde pública, com proporções mundiais.

MS: Os dados mais recentes sobre a saúde mental dos homens no Canadá seguem a tendência registada em estimativas mais globais?
TS: Entre os anos 2000 e 2016, percebe-se que no Canadá a proporção de pessoas que procuraram serviços de saúde mental manteve-se estável, sendo que 57% foram mulheres e 43% homens. Comparando-se com outros países, o Canadá melhorou marginalmente nos últimos anos. No caso de suicídios, comparando-se com países do similar condições socioeconômicas, o Canadá tem uma proporção de 3 para 1, enquanto esses outros países apresentam uma média de 2 homens para uma mulher. Por conta do sistema de saúde universal e a longevidade da população, o Canadá apresenta uma incidência menor de casos de transtornos mentais na população mais velho (acima de 60 anos), o que não segue a tendência de outros países, onde o índice de transtornos mentais e suicídios aumenta com a idade. Vale refletirmos que estes números são relativos a casos reportados, mas como homens tendem a não admitirem problemas e resistirem a procurar ajuda, é bem possível que os números não reflitam fielmente a realidade.

MS: O que pode e deve ser feito para proteger e tratar a saúde mental dos homens?
TS: Pensando nos homens adultos e nos aposentados, uma das iniciativas mais bem- sucedidas para ajudar homens a lidarem com seus problemas de saúde mental é encontrá-los nos seus ambientes de trabalho, onde há mais chance de, através de um ambiente familiar e companheirismo, um diálogo saudável, autêntico e espontâneo sobre o que os aflige. Enquanto ocupados e num ambiente de grupo, os homens tendem a compartilhar mais naturalmente sobre sua vida, sonhos, frustrações e necessidades. E para as crianças, educação é e sempre será a chave para um futuro com mais aceitação, respeito mútuo, escuta solidária e consciência de saúde mental como indispensável para uma vida pessoal e social mais plena. Assim aprenderemos que os homens também precisam, merecem e se beneficiam por procurar conhecer-se, cuidar-se e amar-se.

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