Aida Batista

Um nó muito apertado

 

Mãe! ata as tuas mãos às minhas
e dá um nó-cego muito apertado!
Almada Negreiros

 

Abel Nunes é o autor de “Uma Volta ao Mundo em Dez Contos”, obra editada pela Alma Letra, que fez parte da programação do Festival Literário “ELOS”, que decorreu de 12 a 20 de abril em Nelas, numa organização conjunta do Município e da rede de bibliotecas locais.

Este festival destacou-se por várias iniciativas dedicadas ao escritor António Lobo Antunes. Entre as realizadas, ganharam relevo os encontros de escritores, as conversas com os autores, as exposições, os momentos musicais e teatrais, bem como os roteiros literários, em que não faltaram leituras em voz alta, numa homenagem a quem, apesar de não ser da Vila de Nelas, aí passou parte da sua infância e juventude, durante as longas férias de verão, na casa dos avós maternos que, apesar de já não pertencer à família, continua a ser um repositório de memórias dos que por lá passaram.

Embora eu seja uma beirã por nascimento, foi através das crónicas de Lobo Antunes que comecei a viajar por Nelas, quando nelas se descreviam cenas domésticas e familiares, ruas, lugares, edifícios, gentes, árvores, paisagem e o sempre presente apito do comboio que ecoava entre as Serras do Caramulo e da Estrela que, por vezes, mostrava ainda uma bordadura branca de neve.

Lobo Antunes é alfacinha, nasceu na Freguesia de Benfica, mas conheceu o mundo rural nas suas esporádicas passagens por Nelas. Abel Nunes, ao contrário, nasceu em Forninhos, uma pequena freguesia rural de Aguiar da Beira, mas cedo se tornou num cidadão do mundo, que começou a visitar, a partir de Toronto, cidade para onde emigrou e continua a viver, deslocando-se com regularidade a Lisboa (onde viveu alguns anos) e à sua terra natal. Salvaguardadas as devidas distâncias, e o estatuto que os separa no que toca à expressão escrita, hoje gostaria de vos falar do Abel, o autor e amigo, por ser mais um que, por muito bem-sucedido que tenha sido no seu percurso migratório, a nível pessoal e profissional, mantém tatuadas na pele e na alma as suas origens, por mais curto que tenha sido, no cômputo de uma vida, o tempo que com elas viveu e conviveu.

Um emigrante, quando parte, leva para sempre nos pés o pó do chão primeiro que pisou e as raízes dos caminhos, onde aprendeu a caminhar, ladeado de pinheiros, choupos e outras rasteiras espécies florestais cujo nome e cheiro nunca esquece; as águas dos rios e afluentes onde se lavavam corpos e roupas, postas a corar ao som de melodias que cumpriam o aforismo “quem canta, seus males espanta”; o canto dos pássaros que aprendeu a distinguir segundo a escala musical e o número de notas em que é entoado; o inconfundível coaxar das rãs, que destoa dos demais sons como nota dissonante da linha de uma mesma pauta.

Com o Abel caminhei por uma pequena amostra dos espaços da sua infância, chamando-me sempre a atenção para as cores do campo que despontam com a primavera e o cantar dos pássaros cujas sonoridades conhece bem, sem esquecer as aves de rapina que, ao descansarem do bater das asas, planam sobre nós como se fôssemos intrusos a perturbar a quietude dos céus. Repentinamente, o Abel atravessa o indicador na boca, emite um chiuuu, aponta para as proximidades, coloca a mão em concha à volta do ouvido e pergunta: – “Estás a ouvir?”

Nesse momento, oiço, e não vejo o Abel imigrante, mas o genuíno beirão que, ao partir, levou toda a sua infância como bagagem. É destas memórias que é feita a seiva com que se alimenta ao longo do tempo em que está fora, mesmo que continue a viver numa grande metrópole onde, como professor, diariamente percorreu o tecido urbano do seu ganha-pão.

Aida Batista/MS

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