Aida Batista

Lembrar caminhos velhos

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Ó meu menino Jesus/ ó meu menino tão belo/vieste mesmo a nascer/ na noite do caramelo. – Canção popular de Natal. Créditos: DR.

Minha mãe, talvez para fazer justiça ao ditado popular que diz “Quem canta, seus males espanta”, acompanhava as tarefas domésticas, bem como os trabalhos de costura, com cantorias. Ou eram as canções portuguesas em voga na época, ou as quadras populares do nosso folclore. Na quadra natalícia, ouviamo-la cantar as alusivas à Natividade de Jesus.

Ainda hoje lhes reconheço a letra e as trauteio, sem conseguir, no entanto, emprestar-lhes a voz clara e límpida que minha mãe tinha. A razão para ter escolhido uma delas como epígrafe do texto está ligada a um equívoco que se prende com a palavra caramelo. Em criança, sempre associei o caramelo aos fritos que se comiam nas festas de Natal, a que não faltava uma calda de tal modo apurada que se assemelhava ao espesso açúcar derretido. Caramelos, no plural, era também o nome dado a certos rebuçados, cuja cor dourada denunciava a presença do açúcar, e que ainda hoje se podem encontrar à venda com  a mesma designação. Era uma iguaria habitualmente recusada pelos mais velhos porque se prendia aos dentes, incómodo com que as crianças rejubilavam porque, num tempo em que as guloseimas eram escassas, mais sobrava para elas.

O meu mundo do caramelo ficava por aqui, suficientemente claro para que eu não fizesse outras perguntas. Anos mais tarde, descobri que a “noite do caramelo” é uma noite muito fria, de geada que cria pendentes de gelo nos beirais das casas e deposita cristais na ramagem dos pinheiros. O meu vocabulário alargou-se, mas, para quem vivia numa geografia onde não existiam noites gélidas, era difícil imaginar como seria o caramelo, a não ser por via dos postais natalícios à venda nas livrarias da cidade.

Quando se vive afastada desde tenra idade do espaço-berço, e inserida numa realidade cujo quotidiano é completamente diferente, além do vocabulário não ter sempre um significante correspondente, também as tradições nos chegam apenas pelas vozes dos pais e avós. Aconteceu também com os cantares das janeiras que, não fora a pandemia a interrompê-los, seriam cantados durante a semana que ora finda, na noite de quarta para quinta, por dia 6 ser o Dia de Reis ou da Epifania.

Eu, que em janeiro vivia sujeita a temperaturas muito elevadas e fazia vida citadina numa capital de província, punha-me a imaginar como seria fazer parte de um grupo de rapazes e raparigas que, por serranias e vales, andavam a cantar de porta em porta, para, em troca, receberem variadas peças de fumeiro, castanhas, nozes, sobras das iguarias dos festejos há poucos dias celebrados e até algumas moedas. Deitada na cama e no silêncio da noite, ouvia-os entoar loas ao Menino, Sua mãe Maria e S. José, em quadras simples para de seguida, e ainda no formato de quadras, dirigirem pedidos aos donos da casa.

Vencida por um sono suado, acordava no dia seguinte com o expresso desejo de um dia pertencer a um grupo que noite adentro se divertia, com a certeza de que ao frio do caramelo seria negado o poder de enregelar o calor da alegria partilhada. Muitos anos depois, tive oportunidade de o fazer na aldeia onde moravam os meus pais.

Quando penso nestas tradições, que um certo revivalismo tende a recuperar (e bem), revejo-me em todos os que, longe das suas origens, nesta época sentiram a nostalgia destas práticas. A letra da canção “Natal dos Simples”, de Zeca Afonso, começa por “Vamos cantar as janeiras.” Apesar de não seguir o mesmo modelo do folclore, diz-nos: “Só se lembra de caminhos velhos/ Quem tem saudades da terra.”

Da sua terra, acrescentaria eu, porque é lá que estão as raízes das suas memórias.

Aida Batista/MS

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