Aida Batista

Viagem à volta de uma avó e dois netos

O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. “Carta para Josefa, minha avó”. - José Saramago

Foste-me buscar de carro à estação de comboios. Sentei-me ao teu lado e saudámo-nos num cumprimento contido (a pandemia obriga), escondendo sorrisos confinados debaixo da máscara. Seguimos diretos para tua casa.

Viagem à volta de uma avó-canada-mileniostadium
Créditos: DR.

Um dia, quando passares pelo mesmo (bem como o teu irmão), perceberás o quão estranha me é ainda a sensação de seres tu a levar-me, no lugar do condutor. Vi-vos andar de triciclo com rodas de apoio; depois, sem rodas, em equilíbrios precários; mais tarde, a bicicleta; anos depois, uma acelera, a que se seguiu a mota. Agora, o carro, como se o vosso crescimento se medisse à medida dos meios de transporte que foram dominando. Durante a viagem que nos levou até casa, contaste-me que, nessa tarde, terias na  tua faculdade a cerimónia de “traçar a capa”. Havia passado um ano letivo e, a partir desse dia, deixarias de ser caloiro.

Já em casa, vi-te trajado de negro, com o rigor que se exige a um estudante que o vai usar pela primeira vez. Lembrei-me do teu irmão que passou pelo mesmo, já que cinco anos vos separam. Hoje, está no mercado de trabalho. Um homem! – como diria o vosso avô.

À memória chegam-me, em catadupa, imagens nítidas de ambos bebés, da vossa infância e da vossa adolescência. De repente, diante de mim, dois belos jovens.

Fui avó bastante cedo (ainda não completara 47 anos) e estava no auge da minha carreira, como Leitora de Português no Estrangeiro. A vida de emigrante, apesar dos ganhos, traz também inúmeras perdas, entre as quais os dolorosos meses em que estive ausente das vossas vidas. Por isso, nunca fui aquela avó em cuja casa se depositam os netos de manhã para serem devolvidos ao fim do dia. Nunca fui a avó que levava os netos à creche ou à escola para os ir buscar ao fim das atividades. Nunca fui a avó que dormia em casa dos netos para que os pais pudessem fazer um programa à noite, de vez em quando. Apesar disso, não me senti menos avó por isso, porque os momentos que passámos juntos – em visitas ocasionais, fins-de-semana e férias – eram de tal modo ricos, que conseguiam compensar parte da avosidade vivida à distância.

É com essas memórias que preencho muitos dos vazios que até hoje ficaram. Mas não vivo a culpa de que o meu amor seja menor que o de qualquer outra que acompanha a vida dos netos desde o primeiro dia. Sem corresponder à imagem da avó tradicional, tenho a certeza de que muitos dos momentos que vos marcaram, estão indelevelmente ligados a mim. E são esses que ambos recordarão, quando eu cá já não estiver, porque o meu tempo corre a uma velocidade inversamente proporcional à perda de agilidades físicas e mentais, à medida que o índice de longevidade avança.

Divirto-me com algumas das caricaturas que de mim já fazem. Da forma como me captam certos tiques, de como criticam as minhas conversas redondas em vez de ir diretamente aos assuntos, de criativamente inventarem origens etimológicas, retratando-me nas explicações que vos dou sobre as raízes gregas ou latinas de certas palavras, mas que, saídas das vossas bocas, soam sempre a um tom de carinho.

Acabámos de entrar em julho, mês em que se celebra o Dia dos Avós, e eu estou-vos grata por terem feito de mim uma avó orgulhosa dos valores que vos vejo defender. Antes de partir, se pudesse escolher uma frase, seria: “A vida é curta para o tanto que ainda tinha para aprender”! Dentro dela está o legado que vos deixo: só o saber resiste a qualquer calamidade, viajando sempre connosco, seja qual for o lugar que escolhermos para viver.

Aida Batista/MS

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