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“Pode ser perturbador ver pessoas sem casa a viver no parque. Também é perturbador para as pessoas sem abrigo precisarem de viver no parque.” – Lesley Wood

 

É, sem dúvida uma questão impactante em qualquer sociedade – não há nenhuma normalidade no facto de andarmos pelas ruas da cidade e, por todo o lado, nos cruzarmos com pessoas a dormir no chão, muitas delas sem abrigo rigorosamente nenhum, outras montando “quartos” improvisados com cartões, panos, restos de roupa, ou então pequenas tendas de campismo. Sem nada mais do que algumas roupas, às vezes com a companhia de animais, que são família e aconchego, são os sem-abrigo que enchem cada vez mais as cidades.

O aumento exponencial de sem-abrigo é um fenómeno que é vivido em muitas grandes cidades do mundo, mas como se costuma dizer cada um sabe de si. Toronto era até há poucos anos uma cidade onde o cidadão comum não era confrontado com a desgraça dos outros. Agora está cheia de sinais de que algo vai muito mal em terras canadianas. Cada tenda, cada pessoa deitada na rua, cada ser humano perdido são sinais de que não estamos a ser capazes de dar atenção a quem precisa.

Lesley Wood é socióloga e Professora Associada de Sociologia na York University, e deu-nos a sua perspetiva sobre esta dramática realidade social.

Milénio Stadium: Como avalia a situação em Toronto, onde o número de acampamentos ilegais quase duplicou em relação ao ano anterior?
Lesley Wood: Ninguém ficará surpreendido ao saber que existe uma crise de habitação em Toronto. Há também uma tendência para esperar que a crise da habitação desapareça simplesmente ou que possa ser resolvida através da aplicação da lei. A situação não está a melhorar porque não há habitação suficiente a preços acessíveis. Em 2014, o quarto de albergue médio era de $712 por mês e, atualmente, o quarto de albergue médio é de $1117. No entanto, as taxas de assistência social mantiveram-se estáveis, com uma pessoa solteira a receber apenas 733 dólares por mês. A matemática é clara. Mesmo que uma pessoa tenha um emprego de salário mínimo, trabalhando 40 horas por semana, o preço de uma cama de albergue levaria quase metade do seu salário.
No entanto, é preciso ter cuidado com as estatísticas. Há quase o dobro do número de acampamentos, mas, em geral, esses acampamentos são mais pequenos e estão mais espalhados, uma vez que as pessoas nesses acampamentos são cada vez mais afastadas pela polícia.

MS: Alguns habitantes de Toronto sentem-se privados de espaços públicos ocupados por tendas e pelos seus “residentes”. Que consequências tem esta situação na ligação entre a cidade e aqueles que dela devem usufruir?
LW: Durante a pandemia, vimos muitas pessoas com cartazes nos relvados que diziam: “Apoiamos os nossos vizinhos em tendas”. Compreendemos que, durante a pandemia, as pessoas sem casa não queriam ir para abrigos inseguros. Pode ser perturbador ver pessoas sem casa a viver no parque. Também é perturbador para as pessoas sem abrigo precisarem de viver no parque. Tornam-se um símbolo da forma como as nossas cidades não estão a funcionar de modo a servir as necessidades das pessoas. Isto stressa-nos e é demasiado fácil culpar a vítima. A nossa cultura desconfia das pessoas sem casa e, de um modo geral, das pessoas pobres. No entanto, tal como qualquer outro grupo de pessoas, elas estão simplesmente a tentar sobreviver.

MS: Aqueles que vivem na rua e dormem em tendas são cidadãos que foram esquecidos ou marginalizados pela sociedade. Partindo do princípio que esta frase é verdadeira, como pode estar relacionada com o facto de vivermos num dos países mais ricos e inclusivos do mundo?
LW: O facto de cada vez mais pessoas ficarem sem casa em Toronto é simplesmente o limite mais dramático de uma crise de habitação mais vasta. Isto está a acontecer em todas as cidades mais ricas do mundo. Não se trata de uma coincidência. É um resultado direto da forma como o capitalismo faz da habitação uma mercadoria, uma mercadoria que gera enormes lucros para os investidores. Os investidores e promotores resistem a qualquer esforço para criar habitação social ou habitação a preços acessíveis, fazem lobby junto dos governos para combater os impostos sobre estas transacções imobiliárias ou os esforços de planeamento e, em vez disso, constroem apenas habitação de luxo. Trata-se de um sistema que funciona para ganhar dinheiro e não para servir as pessoas.

MS: A droga e os problemas de saúde mental afetam a maior parte dos residentes dos campos ilegais. Ao permitirmos a existência destes acampamentos, não estaremos a tolerar a criação de guetos?
LW: Penso que não dispomos de bons dados sobre a saúde mental ou o consumo de droga dos residentes dos acampamentos. Sabemos duas coisas. Uma é que as pessoas que têm problemas de saúde mental ou que consomem visivelmente drogas em público enfrentam mais desafios do que aquelas que o podem fazer em privado nos seus condomínios. Em segundo lugar, a eliminação dos campos não resolve os problemas dos sem-abrigo, da saúde mental ou das perturbações relacionadas com o consumo de drogas. Estes são um sintoma de um problema maior.
Os despejos sem que as pessoas tenham um lugar para viver desestabilizam os poucos recursos de que dispõem e levam-nas a tentar sobreviver com menos. A limpeza dos acampamentos leva as pessoas para as ruas, para os transportes públicos, para as bibliotecas e para os hospitais. Tornar-se-ão mais vulneráveis e mais desesperadas. Os acampamentos não são habitações permanentes. O novo plano da cidade para se concentrar mais na obtenção de recursos e alojamento para as pessoas e menos no despejo tem potencial para soluções a longo prazo.

MS: Para além dos acampamentos de sem-abrigo e de pessoas com problemas de saúde mental espalhados pela cidade, temos agora os acampamentos de estudantes em protesto nas universidades. Aparentemente, por um lado, temos acampamentos que nascem e se multiplicam por inércia ou falta de ação política e, por outro lado, temos acampamentos que são usados como forma de expressão e posicionamento político. Esta ligação faz sentido na sua perspetiva?
LW: Estes dois tipos de acampamentos são diferentes, mas partilham algumas características para além das lonas e da polícia. Ambos enviam mensagens políticas que, pela sua visibilidade, exercem pressão sobre as autoridades. As autoridades vêem os acampamentos como uma ameaça à sua legitimidade e eficácia. Querem que eles desapareçam, porque denunciam as falhas do sistema. Os acampamentos de pessoas sem abrigo recordam-nos a necessidade de habitação e de apoios sociais e pressionam a cidade, a província e o governo federal a atuar. Os acampamentos de estudantes, como o da U of T, pressionam a universidade a negociar os seus investimentos em empresas que lucram com o ataque de Israel a Gaza. Embora não sejam bonitos, podem servir de alavanca para grupos relativamente impotentes.
MB/MS

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