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Muito para além da música

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Basta estarmos atentos às redes sociais para percebermos que estão, neste momento na “estrada” vários artistas de renome mundial. Também tem sido notícia e por isso não estamos a dar-vos novidade nenhuma quando aqui vos falamos da afluência estrondosa que estes megaconcertos têm atraído. Os preços de bilheteira, comprados legalmente, atingem valores nunca antes vistos e já nem me refiro aos números de que se fala quando se trata da “revenda” ou, dizendo de uma forma mais dura, “mercado negro”. Muito para além da música, estes são espetáculos que envolvem uma produção e logística gigantes, trata-se afinal de oferecer, a quem assiste, um concerto com uma cenografia, bailarinos, jogos de luz e qualidade de som impactantes e, de preferência, que marquem pela diferença. Até porque, como notou Vasco Sacramento, empresário da área de espetáculos (promotor e agente de artistas), nesta conversa que partilhou connosco sobre este assunto, a rapidez voraz das redes sociais dá ao mundo a possibilidade de se deixar encantar pelo que vê e desejar ter a mesma experiência, ou seja, assistir ao vivo ao que lhe chega ao pequeno ecrã do telemóvel. Mas há muito mais para ser incluído nesta complexa equação cujos resultados apontam sempre para a casa dos muitos milhões de dólares. Quanto ao talento e muito trabalho dos donos de nomes sonantes no mundo música atual, existe claro, mas o que realmente cria estas verdadeiras máquinas de fazer dinheiro é uma extraordinária engrenagem que se estrutura em campanhas de marketing muito eficazes e poderosas.

1x1Milénio Stadium: O que é que está a justificar esta loucura quase coletiva em torno de determinados nomes? E podemos ser específicos e falar de uma Taylor Swift, dos Coldplay, Drake, Harry Styles, da Beyoncé… O que é que justifica que estas pessoas arrastem multidões? O talento musical? Ou há aqui uma máquina de marketing poderosa a trabalhar?
Vasco Sacramento: Eu acho que isto tem muito pouco a ver com talento musical. Algumas dessas figuras são mais interessantes, outras são menos, mas isto tem pouco a ver com música. E, obviamente, tem muito a ver com marketing, no sentido em que os artistas, todos eles, são também marcas comerciais. E principalmente, quando estamos a falar de megaestrelas mundiais. Aí tudo isto é mais evidente. Portanto, a componente de marketing tem muita influência. Depois há aqui também um fenómeno mimético, que é um comportamento humano estudado e que tem muito a ver com toda a gente que vai ver – “eu também quero ir”. E depois como nós vivemos numa sociedade cada vez mais global, onde uma coisa pode acontecer num ponto do globo, mas imediatamente toda a gente no mundo inteiro tem conhecimento de que esse facto ocorreu, ou seja, se um espetáculo em Los Angeles é um tremendo sucesso, nós hoje em dia conseguimos facilmente em Portugal ou noutro sítio qualquer do mundo, apercebermo-nos imediatamente do tremendo sucesso que foi. E isso faz com que as pessoas queiram ter a mesma experiência que aquelas pessoas tiveram no tal espetáculo em Los Angeles. As redes sociais aceleram esse processo ainda mais. É tudo muito visual. Nós estamos a viver uma época em que os espetáculos musicais são cada vez mais visuais e menos musicais. A parte cénica, a parte cenográfica tem uma importância tremenda, ou seja, os highlights, os destaques que depois vão ocupar as redes sociais nos dias seguintes, têm uma capacidade reprodutiva e multiplicadora muito grande e, portanto, eu acho que do ponto de vista do comportamento do público, tem muito a ver com isso, com esse fenómeno. E depois tem a ver também com outra coisa que é o seguinte: com a explosão da banda larga e da internet massificada, nós tivemos uma dispersão muito grande da atenção do público por muitos artistas, ao contrário do que acontecia lá nos anos 80, por exemplo, ou nos anos 90, em que a atenção era muito decidida pela indústria discográfica e muito pelos opinion makers que tinham esse poder. E havia também, já na altura, muito artista ou alguns artistas capazes de fazer digressões, mas as pessoas não tinham acesso à quantidade de música que depois passaram a ter com a explosão da banda larga. Ora, se a internet veio trazer isso, ou seja, nós passámos a ter à nossa disposição os artistas todos do mundo através de um telefone ou de um computador, por outro lado, as plataformas de streaming voltaram a reorganizar o mercado e isso faz com que hoje em dia, a indústria discográfica tenha readquirido o controlo da situação e, portanto, há um leque mais reduzido de artistas que têm uma hegemonia muito maior do que alguma vez tiveram. Fruto de uma coisa que se chama algoritmo, ou seja, a plataforma afunila o nosso gosto. E faz com que nós tenhamos tendência para gostar todos mais ou menos das mesmas coisas a nível mundial. Isso é uma coisa que que a mim, pessoalmente, me preocupa bastante. Há uma certa hegemonização do gosto mundial, ou seja, nós hoje em dia podemos ir a um festival lá em Lisboa, ou em Tóquio, ou em Sidney, ou no Rio de Janeiro e as pessoas têm todas mais ou menos os mesmos gostos. Vestem mais ou menos todas da mesma maneira. Têm mais ou menos os mesmos hábitos gastronómicos, os mesmos hábitos culturais. E há uma hegemonização muito grande dos nossos hábitos de consumo, dos nossos hábitos de lazer. E isso reflete-se também na forma como estamos todos mais ou menos estimulados a ouvir os mesmos artistas.

MS: E em relação aos preços praticados, cada vez mais elevados e em alguns casos a atingirem valores nunca antes vistos?
VS: Bem, por um lado, há esse fenómeno de massificação do gosto – são muitos a gostar do mesmo ou a querer ver o mesmo concerto. Por outro lado, há também outras razões que justificam esse aumento galopante dos preços e que tem muito a ver com essa pressão das redes sociais, que faz com que os custos de produção dos artistas aumentem imenso, porque os artistas cada vez mais querem investir em elementos cenográficos muito complicados, muito caros, porque antigamente o espetáculo acontecia para aquelas 1000, 2000, 5000, 10.000, 20.000. Não interessa… era para aquele número, para aquele conjunto de pessoas que estavam em frente ao palco e o concerto morria ali. Fosse bom, fosse mau ou corresse bem, corresse mal. Morria naquelas pessoas que tinham estado a assistir no local. Agora, se um artista cair em palco, no minuto, no segundo seguinte, o mundo inteiro sabe que o artista caiu no palco. E também se o artista fizer um brilharete e que a coisa correr bem, é a mesma coisa. Por exemplo, ontem vi várias notícias de que a Adele tinha interrompido um concerto em Las Vegas para chamar a atenção de um segurança que estaria a tratar mal um espetador e, portanto, isso teve um efeito multiplicador de tal forma grande que ontem apareceu nas notícias em Portugal, em quatro ou cinco jornais portugueses. Portanto, o que aconteceu num concerto em Las Vegas foi tema de comentário em todo o mundo. Há sempre alguém a filmar e há sempre alguém que depois põe na internet e imediatamente espalha-se de forma voraz. Isso faz com que os artistas cada vez queiram ter produções mais complexas, mais elaboradas e com custos também, obviamente extra estratosféricos. Por outro lado, também nós estamos a viver uma crise de inflação muito aprofundada, ou seja, os custos estão a aumentar bastante e, portanto, isso reflete-se não só nestas megaproduções da megaestrelas, mas também nos espetáculos dos mais humildes artistas. Porque tudo o que são custos de transporte, de alimentação, de estadia, de equipamentos técnicos, etc., tudo isto sofreu um aumento muito grande no pós-pandemia e depois foi ainda aprofundado pela situação da guerra na Ucrânia.

MS: Li, recentemente, que uma das justificações para esta loucura ou histeria coletiva, nomeadamente em casos como os concertos de Taylor Swift, que estão a arrastar de facto multidões em todo o mundo, é a pausa de dois anos e tal provocada pela pandemia que trouxe esta ânsia do público de estar presente, seja por que preço for. Viver a vida, quase como se não houvesse amanhã.
VS: Sim, pode ser. E o período da pandemia também trouxe à indústria musical prejuízos de biliões de dólares. Portanto, dentro da cena musical, há uma necessidade grande de recuperar o tempo perdido. E, portanto, tudo isso acrescenta uma maior pressão sobre o Excel financeiro de cada projeto. E depois há ainda uma outra questão que é que, durante décadas, vivemos com uma realidade financeira na vida dos artistas, em que havia duas fontes de receita principais, que eram os discos e os concertos. Ora, a música gravada perdeu praticamente de forma total o seu valor. Praticamente hoje em dia, com exceção dessa meia dúzia de megaestrelas, ninguém ganha dinheiro com a música gravada. Hoje grava-se muito pouco, não tem nada a ver com o que se gravava e na maioria, na esmagadora maioria dos casos, estes trabalhos gravados nem sequer se pagam a si próprios. Portanto, a receita tem que vir totalmente do espetáculo ao vivo. E isso também faz com que haja uma necessidade de aumentar o preço dos bilhetes. Mas eu acho que a razão tem a ver com a conjugação de todos estes fatores. Há um grande interesse do público, há um comportamento mimético. Toda a gente quer participar, toda a gente quer estar. Há também, nas sociedades ocidentais, uma consciência cada vez maior da importância que o ócio, o lazer, que a cultura e o entretenimento têm nas nossas vidas. Isso é cada vez mais um fator decisivo para as pessoas optarem por viver em determinado sítio, por escolherem um emprego que lhes paga um caminho melhor e que lhes permite ter uma folga maior para ver espetáculos. Porque isso reflete-se não apenas nos espetáculos, mas também, por exemplo, no preço que hoje em dia custa jantar fora. Hoje é muito maior do que era há 10 anos. Ou o quanto é que custa uma noite num hotel – Ou seja, nós temos todos, neste momento uma preocupação com um certo hedonismo nas nossas vidas, que depois se reflete nessas coisas.

MS: Mas há uma outra coisa que gostaria de entender com a ajuda da tua experiência – todos nós sabemos o que acontecia quando apareciam os Beatles em qualquer parte da Europa e até do mundo. A verdadeira loucura que era só a presença física deles, fosse onde fosse. E eu li no outro dia que há pessoas, fãs de Taylor Swift, que chegam ao ponto de usar fraldas para adulto para não perderem nada do concerto e, portanto, não terem que sair dali para lado nenhum. Isto quer dizer o quê? O que é que acontece com o ser humano que chega a este nível de dependência de um artista, de um concerto?
VS: Bem, eu também acredito que haja casos assim, mas são muito extremados e quase patológicos. Não acredito que seja um número assim tão elevado de pessoas a fazer uma coisa dessas. Mas depois há aqui também um outro fenómeno que acho que é também importante e sobre o qual, um dia destes estava a falar com uma amiga minha. É que nós estamos a viver uma grande crise espiritual, fruto um bocadinho da falência da Igreja. Eu acho que nas sociedades ocidentais as pessoas cada vez têm uma ligação menor à Igreja. À Igreja Católica. Têm e podem ainda ter a cultura judaico-cristã instalada e estar intrínseca no seu dia a dia, mas cada vez menos frequentam a Igreja, cada vez menos praticam a sua fé. E isso faz com que as pessoas procurem mecanismos alternativos de fé, de entrega a alguma coisa, de acreditar. Há uma coisa que se verifica às vezes em alguns hábitos de vida hoje em dia. Há algum extremismo, algum fanatismo nalgumas correntes, por exemplo, no vegetarianismo, por exemplo, nas medicinas alternativas, na astrologia… há setores onde as pessoas se entregam quase como mecanismos de substituição da fé e um artista ou uma equipa de futebol podem ter o mesmo tipo de efeitos e eu acho que isso também se justifica muito do que estamos aqui a falar. E sempre existiu. Na verdade, quando era mais novo já havia coisas deste género e sempre existiu, mas parece-me que não como agora acontece. Agora é tudo vivido com maior avidez. Acho que tem mais a ver com os nossos estilos de vida, com uma qualidade de vida superior que vamos tendo e que nos permite viver com maior desafogo e uma maior preocupação com o hedonismo, com o prazer e com o lazer. Depois há também, não sei bem como dizer, tenho medo de ser um bocadinho conservador ou preconceituoso ao dizer uma coisa destas, mas uma certa falência do próprio modelo de sociedade familiar. Ou seja, cada vez temos mais pessoas que não têm filhos ou que têm filhos mais tarde e que, portanto, estão mais libertas das suas obrigações familiares e têm mais tempo para se dedicar a outras atividades. E, portanto, isso pode fazer com que o mercado para este tipo de espetáculos aumente mais. Mas acho que também pode ter muito a ver também com coisas muito concretas, como o que decorre da sociedade imediatista em que nós vivemos, com o potencial multiplicador que os telemóveis e as redes sociais trazem aos espetáculos e que isso faz com que os artistas apostem cada vez mais em produções megalómanas. E que, portanto, também são mais caras.

MS: Quando vemos, por exemplo, o espetáculo da Beyoncé… só a cenografia que ela transporta de palco para palco, de estádio para o estádio. Só isso, a despesa com isso, já deve ser uma coisa absolutamente astronómica. Fora as pessoas que estão envolvidas numa produção deste género, das tais mega stars. Quanto tempo leva a preparar uma produção desta dimensão? O que é que é normal, digamos. Quanto tempo leva desde que se decide fazer uma tour e correr o mundo com o espetáculo?
VS: Pode levar um aano, até mais que isso. Eu conheço alguns casos de artistas que só em ensaios passam três, quatro, cinco meses. E é claro, isso tem que se pagar, como é óbvio. Desde o local onde se ensaia, tem que se pagar às pessoas que estão a ensaiar, os músicos, os técnicos, bailarinos, o que for, não interessa. Tudo isso tem que se pagar. E as logísticas destes concertos são pesadíssimas, pesadíssimas e às vezes as pessoas não imaginam. Para um espetáculo como, por exemplo, dos Coldplay, que estiveram em Coimbra há pouco tempo e eu acompanhei esse espetáculo de muito de perto, nos bastidores, estamos a falar de para além das pessoas que se veem nos shows, quatro pessoas em palco, de milhares de pessoas que estão envolvidas naquela produção. Não são centenas, são milhares de pessoas. Estamos a falar, por exemplo, só em cantinas, os Coldplay têm duas cantinas a funcionar em permanência, com tudo o que isso acarreta em termos de cozinheiros, de equipamentos, matérias-primas. Eles têm também uma lavandaria a funcionar e que os acompanha para todo o lado porque estão meses e meses e meses fora de casa e não têm onde lavar a roupa. Uma coisa como esta tem uma lavandaria que os acompanha pelo mundo inteiro onde eles levavam a roupa com a colaboração de uma equipa. Não têm tempo para poder tratar da sua própria roupa. E todos estes pormenores custam muito dinheiro, porque tudo isto são estruturas que não dá para sequer para ir alugando país a país. São estruturas que são transportadas pelo mundo inteiro. E é em camiões TIR Som são um espetáculo. Por exemplo, na Altice Arena, um espetáculo de pavilhão para 20.000/18.000 pessoas, pode perfeitamente acarretar o transporte de 40, 45 camiões TIR, digo isto para as pessoas terem noção da quantidade de material e de pessoas que estão envolvidas numa estrutura deste género. Eu nunca fiz uma produção de estádio, mas posso dar o exemplo da Altice Arena. Nunca fiz uma produção de estádio, mas como disse tive esta oportunidade de verificar ou de ver no local, quando acompanhei de perto os bastidores dos Coldplay, no dia das desmontagens, vi a fila interminável de camiões que estavam à espera de entrar no estádio, para o perímetro do estádio, para carregar e seguir para Barcelona. Impressionante, de facto.

Madalena Balça/MS

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