Aida Batista

Um nó muito apertado

“Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!” - Almada Negreiros

Cumpriram-se este mês mais de três décadas em que, órfã de ti, me resignei a viver com a tua ausência. Faço contas e concluo que, além de ter sido tão pouco o tempo que passei contigo, não o valorizei como o deveria ter feito.

Saí de casa com 18 anos, cheia de vontade de sair, porque era chegado o tempo de viver a minha própria vida, mas precisei de autorização para casar porque a maioridade só se atingia aos 21 anos. Se a esses dezoito, acrescentar as vezes em que te visitava, as festas de família em que nos juntávamos (e não foram assim tantas), os curtos períodos que, com o pai, passaste na minha casa, apercebo-me que pouco gozei de ti.

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Créditos: DR.

Dominasse eu a arte das pitonisas e teria percebido que não estavas destinada à longevidade de que hoje tantos se orgulham. Como poderia eu predizer o teu futuro se não tinha memórias de alguma vez te ter visto de cama? Doze vezes pariste os filhos que Deus te deu (como dizias) mas, no dia seguinte, já estavas à mesa connosco, de novo grávida do prazer de desfrutares da nossa companhia.

Nunca te queixavas, embora conhecêssemos alguns episódios de natureza reumatóide que te tolhiam movimentos quando levantavas os braços. Chegaste mesmo a ir a banhos termais que, contados na tua simplicidade narrativa, não eram tratamentos, mas soavam a passeio porque ias e vinhas no mesmo dia. E como tudo era verbalizado de forma tão natural, nenhum de nós alguma vez se lembrou de que, em vez de ires a um lugar desconhecido, te poderíamos ter oferecido – a ti e ao pai – a estadia de uma semana em termas consentâneas com os sintomas que apresentavas. No entanto, tenho a certeza de que não te sentirias bem naqueles ambientes, à época frequentados por famílias que faziam dos tratamentos período de férias, e onde se reencontravam amizades nascidas de muito anos de convivência termal. A tua elevada modéstia não casava com os códigos daquela burguesia que, pelos salões, desfilava “toilettes”, muito acima das peças simples que costuravas na tua velha máquina Singer.

Encostada à parede do “nosso” quarto (e destaco “nosso” porque sempre o partilhei com irmãos), junto à janela, nela passaste muitas horas a costurar dias de alegria, mas também de uma ou outra tristeza que, no avesso do pano, escondias dos nossos olhares inocentes.

Ao som cadenciado do pedal a fazer andar a correia que movia a agulha por onde passava a linha da tua existência, trauteavas as canções mais ouvidas na rádio. Com a nitidez dos discos que os anos nunca riscaram, consigo ouvir-te na versão original de 1943 (não era eu ainda nascida) “Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, tão modesta quanto eu”, apesar de as atuais gerações a conhecerem com a paternidade dos Xutos&Pontapés.

Durante dias e dias, exceto ao domingo – religiosamente respeitado por ser o Dia do Senhor -, alinhavaste muitos metros de amor que soubeste espalhar à tua volta. Foi com ele que cerziste a paciência e a calma com que apaziguavas brigas, de cada vez que os filhos se acercavam de ti a fazer queixas uns dos outros. Habilmente os separavas sem acusar culpados, porque sabias bem que, momentos depois, celebrariam as pazes feitas nas tréguas das brincadeiras. A ponto largo, de quem já estava habituada ao choro de bebés em casa, chuleavas os cuidados que distribuías pelos mais pequenos, distinguindo sem dificuldade os fios do choro: fome, sono ou fralda suja.

Não sei de onde recolheste a sabedoria com que soubeste remendar todos os rasgões da vida, menos aquele que, a 17 de maio de 1989, nos separou para sempre.

As Quatro Estações-portugal-mileniostadium

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