{"id":99508,"date":"2022-08-12T09:45:05","date_gmt":"2022-08-12T13:45:05","guid":{"rendered":"https:\/\/mileniostadium.com\/?p=99508"},"modified":"2022-08-12T09:45:05","modified_gmt":"2022-08-12T13:45:05","slug":"sem-rosa-sem-nada","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/mileniostadium.com\/temas-de-capa\/sem-rosa-sem-nada\/","title":{"rendered":"Sem rosa, sem nada"},"content":{"rendered":"

\"Sem<\/p>\n

Sem medo, Am\u00e1lia Rodrigues<\/a> cantava \u201cO medo mora comigo\u201d, como se se tratasse de um animal de estima\u00e7\u00e3o. Na minha inoc\u00eancia, interrogava-me como se podia cantar o medo daquela maneira e, logo depois, acrescentar \u201c\u00c9 com sil\u00eancio que fala\u201d, tornando-o mudo, como um segredo bem guardado dentro de si.\u00a0<\/span><\/b><\/p>\n

N<\/span>\u00e3o me lembro de alguma vez ter cultivado medos no horto da minha imagina\u00e7\u00e3o: da casa calada quando todos dormiam; das sombras que ganhavam formas assustadoras no escuro da noite; das trovoadas a ribombar ao som do choque das nuvens (como nos diziam); dos raios que cruzavam os c\u00e9us em instant\u00e2neos clar\u00f5es de luz; das chuvadas tropicais que, de t\u00e3o fortes, se transformavam em enxurradas da ira de S. Pedro, zangado com os pecados dos homens (aprendia-se na catequese); dos cemit\u00e9rios, onde cedo aprendi a lidar com a morte, quando esta n\u00e3o era ainda escondida das crian\u00e7as.<\/span><\/p>\n

Fui crescendo sem medos, porque, de t\u00e3o depressa me ter feito adulta, n\u00e3o me sobrou tempo para os ter. Apesar disso, a vida foi-me generosa: sou filha, m\u00e3e e av\u00f3 da paz, nascida dos destro\u00e7os da II Guerra Mundial. Por isso, tamb\u00e9m nunca tive medo da morte, essa, sim, a morar comigo desde que nasci. Aguardo-a tranquilamente, na certeza da sua cada vez maior proximidade, por cada novo dia que passa. Dela n\u00e3o saberei hora nem dia, porque ficar\u00e3o averbados numa certid\u00e3o de \u00f3bito destinada a terceiros.<\/span><\/p>\n

“Aquele que morreu\u00a0<\/span><\/b>n\u00e3o o saber\u00e1 nunca.” – <\/b>Manuel Ant\u00f3nio Pina<\/b><\/p>\n

Ana Lu\u00edsa Amaral, a grande poeta que recentemente nos deixou, no poema \u201cTestamento\u201d, confessou que tinha medo das alturas. Por ironia do destino, o \u201cassento et\u00e9reo\u201d que agora ocupa n\u00e3o foi o de nenhum avi\u00e3o, mas atribu\u00eddo por um passageiro que, clandestinamente instalado no seu corpo, lhe trocou o lugar do voo. Se estivesse ainda connosco, esta eterna viajante das palavras, encheria os seus poemas de muitos outros medos, intrusos das nossas vidas, sem que nenhum de n\u00f3s d\u00ea por isso. Pelo contr\u00e1rio, \u00e9 a alegria que anda no ar. Ap\u00f3s dois anos a gerir os medos da pandemia, vivemos a fase anest\u00e9sica da celebra\u00e7\u00e3o do \u201cvai ficar tudo bem\u201d. Sedentos de encontros e reencontros, queremos recuperar o tempo perdido, neste ver\u00e3o que nos tem brindado com temperaturas convidativas para a divers\u00e3o e o conv\u00edvio. Esplanadas cheias, muita gente a circular \u00e0 noite na rua, festivais de m\u00fasica apinhados de gente de todas as faixas et\u00e1rias a vingarem-se do tempo em que foram obrigados a viver o medo dos cont\u00e1gios.<\/span><\/p>\n

Por entre pulos a acompanhar a batida musical, palmas e dan\u00e7as que variam segundo a toada que o ritmo imp\u00f5e, um novo v\u00edrus se come\u00e7ou a instalar, aproveitando este nosso tempo de distra\u00e7\u00e3o e euforia. Esquecemo-nos que esta semana, em especial, estamos a lembrar os 77 anos ap\u00f3s Hiroshima e Nagasaki, hoje destinadas a inscrever top\u00f3nimos noutros lugares, com o mesmo grau de destrui\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n

Eu n\u00e3o era ainda nascida quando caiu a primeira bomba at\u00f3mica, mas nunca me cansei de ver as nuvens de cogumelos que as explos\u00f5es provocaram. Nunca deixei de ler, ver e ouvir sobreviventes sobre o horror que puderam testemunhar.\u00a0<\/span><\/span><\/p>\n

Ney Matogrosso, fez aquilo que s\u00f3 os poetas podem fazer: transformar os cogumelos em rosas, como a Rainha Santa das rosas fez p\u00e3o. E comp\u00f4s a Rosa de Hiroshima<\/a>, cujos apelos deveriam ser ouvidos por aqueles que t\u00eam o poder de carregar no bot\u00e3o que tudo destruir\u00e1, deixando-nos sem c\u00e9u para sermos \u00e1tomos livres.\u00a0<\/span><\/span><\/p>\n

\u00a0<\/span>\u201cPensem nas crian\u00e7as, mudas, telep\u00e1ticas\/ pensem nas meninas, cegas, inexatas\/ Pensem nas mulheres, rotas alteradas\/ Pensem nas feridas, como rosas c\u00e1lidas. Mas, oh, n\u00e3o se esque\u00e7am da rosa\/ da rosa de Hiroshima, a rosa heredit\u00e1ria\/ A rosa radioativa, est\u00fapida e inv\u00e1lida (\u2026).\u201d<\/span><\/p>\n

Agora, sim, tenho medo, muito medo! Do nuclear que poder\u00e1 transformar o nosso mundo num lugar \u201cSem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.\u201d<\/span><\/p>\n

Aida Batista<\/a>\/MS<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Sem medo, Am\u00e1lia Rodrigues cantava \u201cO medo mora comigo\u201d, como se se tratasse de um animal de estima\u00e7\u00e3o. Na minha inoc\u00eancia, interrogava-me como se podia cantar o medo daquela maneira …<\/p>\n","protected":false},"author":40,"featured_media":99502,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false,"footnotes":""},"categories":[4530],"tags":[15656,16065,16450],"jetpack_sharing_enabled":true,"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-content\/uploads\/2022\/08\/hiroshima-nagasaki-e1660311403827.png","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/99508"}],"collection":[{"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/users\/40"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=99508"}],"version-history":[{"count":1,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/99508\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":99510,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/99508\/revisions\/99510"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/media\/99502"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=99508"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=99508"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=99508"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}