{"id":70675,"date":"2020-11-20T15:06:30","date_gmt":"2020-11-20T20:06:30","guid":{"rendered":"http:\/\/mileniostadium.com\/?p=70675"},"modified":"2020-11-20T15:06:30","modified_gmt":"2020-11-20T20:06:30","slug":"chao-de-memorias","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/mileniostadium.com\/temas-de-capa\/chao-de-memorias\/","title":{"rendered":"Ch\u00e3o de mem\u00f3rias"},"content":{"rendered":"
\"Ch\u00e3o
Foto: Erik McClean<\/figcaption><\/figure>\n

 <\/p>\n

Quando nasci, o choro que denunciou a minha chegada foi um preg\u00e3o p\u00fablico a anunciar a minha carta de alforria lavrada com o corte do cord\u00e3o umbilical. A partir daquele momento primeiro, toda a minha informa\u00e7\u00e3o gen\u00e9tica vinha carregada da vontade de ter mundo. Numa idade sem mem\u00f3ria me levaram de casa para bem longe e, \u00e0 medida que fui crescendo, aprendi a chamar meu a outro ch\u00e3o que n\u00e3o aquele onde nascera. E n\u00e3o me lembro de alguma vez me ter questionado sobre as rela\u00e7\u00f5es de perten\u00e7a a este lugar onde me fiz gente, rodeada de toda a minha fam\u00edlia nuclear – pais, av\u00f3s, tios e irm\u00e3os.<\/b><\/p>\n

S<\/span>abia que nascera na metr\u00f3pole – como ent\u00e3o se dizia – onde habitava toda a outra parte da fam\u00edlia que nunca conhecera. De vez em quando, chegavam cartas a desejar que estiv\u00e9ssemos todos de boa sa\u00fade, que eles por l\u00e1 ficavam bem, com novidades da terra e das terras, como as sementeiras ou as colheitas, segundo a \u00e9poca do ano, de um ou outro nascimento, um batizado ou casamento, festividades que seguimos de longe mas a que sempre ficamos alheios, at\u00e9 ao dia<\/span> em que a fam\u00edlia do nosso lado tamb\u00e9m os come\u00e7ou a cel<\/span>ebrar. Chegavam tamb\u00e9m not\u00edcias de mortes, ligadas a nomes que n\u00e3o eram de ningu\u00e9m pr\u00f3ximo \u2013 um conhecido ou um vizinho.<\/span><\/p>\n

At\u00e9 ao dia em que a guerra colonial estalou, e pass\u00e1mos a temer que algum dos nossos virasse t\u00edtulo do poema \u201cO menino da sua m\u00e3e\u201d por n\u00e3o alcan\u00e7ar o des\u00edgnio \u201cQue volte cedo, e bem\u201d. A partir de ent\u00e3o, meu pai sentava-se junto do r\u00e1dio da sala a ouvir di\u00e1ria e religiosamente o notici\u00e1rio das 13 h, para perceber se est\u00e1vamos a salvo de movimentos dos terroristas, nome dado aos que lutavam pela independ\u00eancia de um ch\u00e3o, que eu, erradamente, pensava ser meu.<\/span><\/p>\n

Os comp\u00eandios eram os mesmos para todos os territ\u00f3rios do Imp\u00e9rio, como se este fosse uma s\u00f3 unidade, um ch\u00e3o matricial \u00fanico. Foi nas suas p\u00e1ginas que, desde cedo, a minha imagina\u00e7\u00e3o aprendeu a navegar por rios e afluentes que banhavam terras que um dia sonhava conhecer, a parar em esta\u00e7\u00f5es e apeadeiros estribada em carruagens que a minha mem\u00f3ria recitava de cor, a subir serras e a descer vales por onde deslizava a cana da \u00edndia com que os apontava no mapa, a cavalgar lez\u00edrias onde me cruzei com touros e campinos, a galgar socalcos voltados para o Douro de onde se erguiam as cepas das minhas ra\u00edzes, a fazer da m\u00e3o pala de cada vez que perscrutava o horizonte do mar que, do Minho a Timor, banhava areias de Portugal. <\/span><\/p>\n

Um dia, sem que nada nem ningu\u00e9m nos tivessem preparado, o Imp\u00e9rio encolheu, ficando reduzido ao ch\u00e3o original a que volt\u00e1mos, ensarilhados nas cordas com que hav\u00edamos de dar os n\u00f3s dos futuros por tecer.<\/span><\/p>\n

No passsdo dia 11, celebraram-se os 45 anos da Independ\u00eancia de Angola<\/a>, o ch\u00e3o a que um dia chamei \u201cmeu\u201d, porque cresci a ignorar a partilha dos demais possessivos. S\u00f3 o compreendi mais tarde, num regresso acelerado pela urg\u00eancia de dar seguran\u00e7a aos filhos que trazia \u2013 um em cada m\u00e3o \u2013 num percurso inverso ao que anos antes fizera com minha m\u00e3e.<\/span><\/p>\n

H\u00e1 quem nunca se tenha reconciliado com este passado de perdas, e nele continue a viver das mem\u00f3rias com que alimenta a condi\u00e7\u00e3o de v\u00edtima. Indiferente aos ventos da Hist\u00f3ria, pensa ainda agarrar entre os dedos a vida a que nunca voltar\u00e1. Gesto in\u00fatil para os que precisam urgentemente de abrir o leque dos possessivos al\u00e9m do \u201cmeu\u201d, alargando-o a todos os que, por direito pr\u00f3prio, desfizeram as malhas que o Imp\u00e9rio tece.<\/span><\/p>\n

\"Milenio<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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