![\"\"](\"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-content\/uploads\/2019\/10\/aida-1.jpg\")
<\/p>\nO olfacto \u00e9 uma vista estranha,
\n<\/i>Evoca paisagens sentimentais por
\n<\/i>um desenhar s\u00fabito do inconsciente.
\n<\/i>Fernando Pessoa<\/b><\/p>\n
<\/p>\n
Casas Contadas \u00e9 o t\u00edtulo de uma das obras de Leonor Xavier. Na narrativa, \u00e9 atrav\u00e9s das casas habitadas ao longo da vida que a autora nos conta o seu percurso, em jeito de biografia. Conhecemos o aforismo \u201cAs paredes tem ouvidos\u201d e as estrofes da letra do fado \u201cDe quem eu gosto, nem \u00e0s paredes confesso\u201d, em que ambos fazem refer\u00eacia \u00e0s paredes, como se estas fossem testemunhas vivas de todos os momentos das nossas vidas, vividas entre quatro paredes, a met\u00e1fora perfeita para evocar a casa.<\/b><\/p>\n
S<\/span>e quisermos, as paredes n\u00e3o s\u00f3 tem ouvidos como ganham voz quando, atrav\u00e9s delas, rememoramos o que vivemos. Se deixamos pegadas nos espa\u00e7os que habitamos, a verdade \u00e9 que tamb\u00e9m nos deixamos marcar por eles, num sistema de trocas que a mem\u00f3ria vai descodificando por \u201cum desenhar s\u00fabito do inconsciente\u201d, de cada vez que nos aproximamos deles. Os espa\u00e7os onde vivemos, e porque l\u00e1 vivemos, deixam de ser ass\u00e9ticos, contaminados que ficam com os sons, cores e odores que funcionam como campainhas da mem\u00f3ria. Para acionar estas campainhas, em muito contribuem todos os pequenos registos que vamos colecionando, guardando, anotando como recorda\u00e7\u00e3o dos epis\u00f3dios que nos marcaram.<\/span><\/p>\n Como dei conta em cr\u00f3nica anterior, o Prof. Josiah Blackmore esteve em Const\u00e2ncia a dar duas confer\u00eancias sobre o mar de Cam\u00f5es. Sendo esta a vila mais camoniana do pa\u00eds, n\u00e3o podia deixar de ter um Jardim-Horto dedicado ao poeta, onde est\u00e3o representadas as esp\u00e9cies vegetais a que Cam\u00f5es faz refer\u00eancia em toda a sua obra: \u00e9pica e l\u00edrica. No meio do jardim, altaneira e frondosa, destaca-se a \u00e1rvore da canela, de cuja casca se extraem os paus de canela que, tanto podem ser consumidos assim, como, depois de mo\u00eddos, nos d\u00e3o o p\u00f3 da t\u00e3o cobi\u00e7ada especiaria. Apesar de a canela provir do tronco, podemos tamb\u00e9m sentir-lhe o cheiro a partir das folhas secas. Basta que as apanhemos do ch\u00e3o e as trituremos entre os dedos, reduzindo-as a pedacinhos pequenos. Se depois os aproximarmos das narinas, de imediato estas acusam o odor da canela.<\/p>\n Face a esta descoberta, achamos que seria uma boa ideia o professor viajar at\u00e9 aos Estados Unidos com algumas destas folhas, que decidimos retirar do alto da \u00e1rvore. Ora, a melhor forma de as transportar, de modo a que n\u00e3o fiquem todas amassadas, \u00e9 acomod\u00e1-las entre as folhas de um livro, que um dia foi tamb\u00e9m \u00e1rvore. Quem n\u00e3o se lembra de que era esta a t\u00e9cnica que us\u00e1vamos para organizar os herb\u00e1rios exigidos nas aulas de bot\u00e2nica?<\/p>\n Por isso, quando chegamos a casa, tirei-as do carro e sugeri ao professor que as colocasse dentro de um livro. Foi buscar uma edi\u00e7\u00e3o que lhe tinha sido oferecida, dois dias antes, por um admirador do seu trabalho. Quando mo entregou, perguntei:<\/span><\/p>\n – Coloco-as ao calhas ou tens prefer\u00eancia por alguma p\u00e1gina?<\/p>\n – Boa pergunta – respondeu-me. \u2013 Olha… no canto IX, est\u00e2ncia 14. Verifica, por favor!<\/span><\/p>\n Fui \u00e0 procura da p\u00e1gina e pasmei. L\u00e1 estava a men\u00e7\u00e3o \u00e0 canela: \u201cLeva pimenta ardente, que comprara\/ A seca flor de Banda n\u00e3o ficou,\/ A noz, e o negro cravo, que faz clara\/ A nova ilha Maluco, com a canela,\/ Com que Ceil\u00e3o \u00e9 rica, ilustre e bela. [Canto IX, est. 14].<\/span><\/p>\n Sei quanto o Professor Blackmore \u00e9 um grande conhecedor da obra de Cam\u00f5es, mas do que eu n\u00e3o estava \u00e0 espera era de uma mem\u00f3ria t\u00e3o certeira, que conseguisse identificar n\u00e3o s\u00f3 o Canto, mas ainda a est\u00e2ncia, como se tivesse sido levado pelo cheiro da canela.<\/p>\n E o ramo da caneleira l\u00e1 ficou prensado entre os odores da pimenta, da noz, do negro cravo e da canela, como marcador de uma viagem que o levar\u00e1 de regresso \u00e0s \u00edndias ocidentais.<\/p>\n![\"\"](\"https:\/\/mileniostadium.com\/wp-content\/uploads\/2019\/02\/aidaBatista-300x129.png\")
<\/p>\n