{"id":100310,"date":"2022-09-26T09:13:45","date_gmt":"2022-09-26T13:13:45","guid":{"rendered":"https:\/\/mileniostadium.com\/?p=100310"},"modified":"2022-09-26T09:13:45","modified_gmt":"2022-09-26T13:13:45","slug":"uma-bata-portuguesa-com-certeza","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/mileniostadium.com\/opiniao\/aida-batista\/uma-bata-portuguesa-com-certeza\/","title":{"rendered":"Uma bata portuguesa, com certeza!"},"content":{"rendered":"

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Fruto de uma educa\u00e7\u00e3o urbana, nunca tive de meter as m\u00e3os na terra para dela tirar o que me chegava ao prato. At\u00e9 o jardim, no quintal da casa, era minha m\u00e3e quem dele cuidava, dominando na perfei\u00e7\u00e3o a linguagem das plantas. Onde quer visse uma esp\u00e9cie nova, n\u00e3o se ensaiava nada de pedir uma raiz ou uma pernada, e, com os seus dedos de horticultora, os colocar na companhia das outras.<\/strong><\/p>\n

Apesar de ter crescido numa capital de prov\u00edncia, nunca vivi alheia a pr\u00e1ticas, express\u00f5es populares e palavras ligadas ao campo, porque me habituei a ouvir de meus pais as suas origens rurais, em que se destacavam as atividades agr\u00edcolas. Fui construindo, no meu imagin\u00e1rio, cen\u00e1rios com paisagens cheias de cores, cheiros e gente dentro. A quil\u00f3metros de dist\u00e2ncia da aldeia que nunca conhecera, aprendi a conhecer o Portugal dos anos 50 e 60, que em nada se compara ao de hoje. Por\u00e9m, pese embora o recurso \u00e0 mais moderna tecnologia, h\u00e1 um conjunto de tarefas que nunca cortaram com os modelos de outrora.<\/p>\n

Nesta minha recente viagem ao Norte do pa\u00eds, ao evitarmos as autoestradas, percorremos antigas estradas de curvas e contracurvas sinuosas e caminhos vicinais, que nos permitiram ver e ouvir marcas de um tempo que n\u00e3o desapareceu: vocabul\u00e1rio que j\u00e1 ningu\u00e9m usa, express\u00f5es regionais t\u00edpicas, vest\u00edgios de tarefas tradicionais, ru\u00ednas que resistem ao tempo, e teimam em n\u00e3o se deixarem cair, com a ajuda de carcomidas traves que lhes suportam o peso, ou portas com ferrolhos de madeira, que nada protegem porque podem ser abertas por quem passa. No entanto, ali est\u00e3o, s\u00edmbolo de um tempo que vivia de portas abertas e respeitava a propriedade alheia.
\nEst\u00e1vamos junto de um santu\u00e1rio, um dos muitos espalhados pelo pa\u00eds, quando uma vaca cachena (caracter\u00edstica da Serra do Soajo), atravessou a estrada com uma corda ao pesco\u00e7o, sinal de que fugira do local a que havia sido presa. Uma camponesa, que conhecia a sua propriet\u00e1ria, agarrou-a pela corda, e, sem medo, puxou-a indicando-lhe o caminho de regresso. Sem qualquer cerim\u00f3nia, voltou-se para n\u00f3s e, numa avalia\u00e7\u00e3o depreciativa, atirou: \u201c\u00d3 meninas, \u00e9 feia \u2018cu m\u00e1\u2019 dona, a caralha!\u201d A gente do Norte, al\u00e9m de n\u00e3o colocar filtros na linguagem, ainda a feminiza, porque a gram\u00e1tica que utiliza ganhou o privil\u00e9gio de se exprimir na liberdade que o povo lhe d\u00e1.
\nAo longo da paisagem, a mulher est\u00e1 muito presente e vestida com uma indument\u00e1ria, que nunca vi em mais nenhum pa\u00eds que tenha visitado. Por a considerar genuinamente nossa, chamo-lhe \u201ca bata portuguesa\u201d, tendo sabido que tamb\u00e9m emigrou com o enxoval das mulheres da nossa di\u00e1spora! Por cima da roupa que diariamente usam, e para se protegerem de poss\u00edveis n\u00f3doas, vestem uma bata por cima. O modelo pouco varia: decote redondo ou em bico, com bot\u00f5es de cima a baixo, que permitem livrarem-se rapidamente dela caso a situa\u00e7\u00e3o exija apresenta\u00e7\u00e3o mais cuidada. O padr\u00e3o do tecido tamb\u00e9m pouco varia e, habitualmente, recorre a uma variedade de formas geom\u00e9tricas de diversas cores e tamanhos.<\/p>\n

H\u00e1 uns anos, participei na apresenta\u00e7\u00e3o de um livro de uma escritora minha amiga, na Casa do Alentejo de Toronto. A autora vestia um lindo vestido de seda natural que a filha lhe havia oferecido para a ocasi\u00e3o. Ap\u00f3s a sess\u00e3o de aut\u00f3grafos, tir\u00e1mos v\u00e1rias fotografias, mas, assim que olhou para uma delas, n\u00e3o disfar\u00e7ou o desagrado: \u201c\u00d3 Aida, parece que estou com uma bata.\u201d<\/p>\n

N\u00e3o precisou de acrescentar mais nada. Percebi logo a que batas se referia, j\u00e1 que a nossa roupa tamb\u00e9m fala e envia mensagens f\u00e1ceis de descodificar. Mais tarde, confessou-me que nunca mais o voltara a vestir em cerim\u00f3nias p\u00fablicas.<\/p>\n

Coitado, de fino corte, n\u00e3o merecia tal sorte!<\/p>\n

Aida Batista<\/a>\/MS<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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