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Uma disputa de letras

Aida Batista

A alteração à letra do hino do Canadá era uma reivindicação antiga que, ao fim de doze tentativas, viu satisfeita a pretensão de lhe alterar um verso, para que se tornasse mais inclusivo e perdesse a marca do género. Ou seja, substituiu-se em «True patriot love “in all thy sons” command» por “all of us”, já que o masculino “sons” deixava de fora o patriotismo das filhas.
Justin Trudeau regozijou-se com o facto de ter sido dado mais um passo para a igualdade de género, e apenas o partido conservador se opôs a este diploma, que aguarda o carimbo oficial da Governadora Geral do Canadá.
Ora aqui temos uma situação em que, mais uma vez, se reconhece a força das palavras. Bastou a mudança de dois pronomes e uma preposição para que o amor patriótico ficasse plasmado no todo do país.
Esta notícia, publicada pelo “Observador” e também abordada numa das últimas edições deste jornal, fez-me lembrar iniciativas de outros países, incluindo o nosso, que não obtiveram o mesmo sucesso. Em Portugal, houve quem considerasse a nossa letra fascista, reacionária e muito ligada aos valores do período da colonização. Habituámo-nos a cantar apenas a primeira estrofe mas, se o lermos na íntegra, logo percebemos que, tal como na primeira, existe uma exaltação de memórias que nos ligam ao nosso passado histórico. Esse passado existiu, e não é mudando a letra do hino que o apagamos.
Se isto é válido para o Hino, o mesmo acontece com a Bandeira, ambos símbolos identitários do nosso país. Ora, estes símbolos mais não são do que representações gráficas e musicais que, ao serem cantados e hasteados, transmitem não só o sentimento de unidade nacional, mas também a relação de pertença a um determinado chão pátrio. É por isso que nos arrepiamos e comovemos, quado os vemos entoados e içados num pódio, esteja ele “cá dentro” ou “lá fora”.
Todos os hinos (até o espanhol que é apenas instrumental) nascem de certas condicionantes históricas (veja-se a Marselhesa com nome de cidade), determinantes para as suas estruturas rítmicas, que podem ir de uma sequência de timbres melódicos, como é o caso de “O Canada”, ou de marchas guerreiras e revolucionárias, num verdadeiro apelo ao nacionalismo e ao confronto.
Composta em 1890 por Henrique Lopes de Mendonça (letra) e Alfredo Keil (música), a Portuguesa foi uma acalorada reação ao Ultimato Inglês de 11 de janeiro, que exigia a Portugal a retirada das forças militares, chefiadas por Serpa Pinto, de uma faixa de território africano compreendido entre Moçambique e Angola.
A cedência de Portugal face às exigências britânicas gerou uma onda de indignação nunca vista, cujo alcance não cabe no espaço desta crónica, que provocou a queda do governo e o rei D. Carlos ser acusado de falta de firmeza.
Saída do ventre deste nacionalismo exacerbado, e adotada pela República como Hino Nacional a 19 de junho de 1911, continha no seu refrão os versos: “Contra os bretões, marchar, marchar!”
Pacificada a disputa territorial, não fazia sentido manter os bretões na letra, e estes foram substituídos pelos canhões, palavra facilmente ajustada à métrica e à rima.
Claro que é hoje obsoleto falar em canhões, porque as guerras ganharam contornos tecnológicos e os canhões mais não são do que peças museológicas, muitas delas a céu aberto. Pessoalmente, não me faz impressão nenhuma cantar garbosamente o refrão, porque o relego para a categoria de metáfora, que prefigura um qualquer inimigo do qual nos temos de defender.
Como figura de estilo, além de ser inofensiva, dá-me a liberdade de não a ler de forma literal, mas de lhe dar a construção mental que bem me aprouver.

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