Lifestyle

O feminino das pedras

Aida Batista

Em todos os meios de comunicação social, muito se tem escrito e falado nos últimos dias sobre o conteúdo de um acórdão do tribunal, assinado por um juiz e uma juíza, em que se recorre à Bíblia para atenuar a pena dos dois agressores (marido e amante) que, em conluio, decidiram punir a mulher adúltera, agredindo-a em várias partes do corpo com uma moca de pregos.
Como mulher, e cidadã de um estado de direito, que exige ser tratada em termos de igualdade perante a lei, não podia deixar de abordar este assunto. Porém, depois de tudo quanto li e ouvi sobre a indignação geral que tal sentença provocou, interroguei-me sobre o que poderia mais acrescentar que não tivesse já sido dito e escrito.
Por isso, e pelo respeito que me merece a voz autorizada do nosso premiado Prémio Pessoa 2016, Frederico Lourenço, tradutor da Bíblia, aqui reproduzo excertos do texto de sua autoria, publicado no Expresso de 28 de Outubro.
“A semana passada ficou marcada pelo tsunami de indignação sobre aquele acórdão concernente ao caso de violência praticada contra uma mulher por dois homens, acórdão chocante pela forma como desculpabiliza os perpetradores da violência, ao mesmo tempo que culpabiliza a vítima pelo facto de ser «adúltera».
Recorde-se que, na semana anterior, a imprensa e as redes socias (pelo menos a nível internacional) estavam incendiadas com o caso de Harvey Weinstein, esse representante repulsivo da «masculinidade tóxica». A questão é esta: agredir uma mulher com a justificação de ela ser “adúltera” e os comportamentos de Weinstein são duas faces da mesma moeda. São sintomas de uma realidade imemorial, que a Bíblia e os poemas de Homero nos dão a ver. Estes testemunhos do passado mostram-nos como nós éramos há 2800 anos: e não éramos, infelizmente, muito diferentes do que somos hoje. A mulher como propriedade (por isso proibida de ser “adúltera”) e a mulher como comodidade (objeto de assédio) são duas maneiras de olhar a relação entre os sexos que mergulham as suas raízes na mundividência patriarcal de que somos herdeiros, tanto pelo lado judaico-cristão como pelo greco-romano. Revelam o olhar do homem que vê o mundo como coutada sua, feita para ele pelo seu pai e avô (e bisavô e por ai fora), sempre à medida da sua heterossexualidade. Mundo esse em que a fêmea é propriedade do macho: é pertença dele; é objeto dele.
O facto de o juiz ter citado a Bíblia (onde o adultério merece a condenação à morte em Lv. 20:10) levou muitas pessoas (até a Conferência Episcopal) a contraporem o perdão concedido por Jesus à mulher adúltera no Evangelho de João. A Bíblia é sempre uma arma ingrata para quem embarca em cruzadas, dado que os diferentes textos que a compõem veiculam mensagens tantas vezes contraditórias: o Antigo Testamento preceitua a condenação à morte como castigo do adultério, ao passo que o Novo Testamento nos mostra o filho de Deus a desmontar essa lei que Deus antes aprovara. (…)
Mas para lá do debate sobre qual das duas passagens contraditórias da Bíblia é que vale, sobremaneira problemática, voltando ao acórdão, é a terminologia usada pelo juiz. “Adúltera é uma palavra horrenda, carregada dos mais desagradáveis pressupostos misóginos. (…)
Em todo o caso, o lugar da Bíblia é fora do tribunal. A validade suprema cabe às leis da República. A violência doméstica é crime. Não há que culpabilizar «adúlteras» nem desculpabilizar os seus agressores. Violência é violência. Não existe atenuante possível para um homem que bate numa mulher.”

Obrigada, Frederico Lourenço, pelo brilhantismo da sua análise. Neste momento, todas as pedras fazem falta para a reconstrução de casas perdidas nos incêndios. Não as atiremos como argumento de acórdãos obscenos, que ainda lapidam mulheres!

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER