Carminho: A voz que resiste e transforma o Fado

Carminho, nome artístico de Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, consolidou-se, ao longo da sua carreira, como uma das vozes mais inovadoras e influentes do fado contemporâneo. Nascida em Lisboa numa família intimamente ligada ao fado — sendo a sua mãe, Teresa Siqueira, também fadista —, Carminho não só herdou uma tradição, como assumiu a missão de a manter viva e em constante mutação. A sua arte é o cruzamento de um profundo respeito pelas raízes com uma coragem artística que a leva a explorar novos territórios musicais e temáticos.
O seu mais recente trabalho, “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir”, lançado em outubro de 2025, não é apenas o seu sétimo álbum de estúdio; é uma declaração de princípios, uma obra que reafirma o fado como uma linguagem viva, capaz de traduzir o presente, o futuro e, sobretudo, a complexidade da alma feminina. Produzido integralmente pela própria artista, Carminho aprofunda neste disco uma proposta estética e autoral de grande nível. A voz assume o papel primordial, não só como instrumento de uma intérprete de exceção, mas também como artista de múltiplas “vozes” que a atravessam: a tradição ancestral, a herança de outras cantoras e as experiências humanas. O título, por si só, mostra esta dualidade intrínseca ao fado – o eterno “morrer de amor” – mas acrescenta um elemento: “o resistir”. É nesta tensão que se encontra a essência do álbum, que procura equilibrar a entrega lírica do fado com uma postura de força e reflexão. “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” destaca-se pela sua inegável vertente feminista, celebrando a mulher não apenas como intérprete central no fado, mas também como criadora e como uma figura mística, ligada com o espiritual e o intangível. A fadista reforça o seu lado de compositora, assinando oito das onze faixas do álbum, e arrisca na experimentação sonora, um passo que a afasta da repetição de fórmulas. Elementos tradicionais como a viola de fado e a guitarra portuguesa convivem com texturas da música experimental e eletrónica, nomeadamente o mellotron e o vocoder, que misturam e sintetizam a sua voz, criando paisagens sonoras inesperadas no universo fadista. A obra propõe um fado em constante transformação, vivo e contemporâneo.
Desde o lançamento do seu primeiro álbum, “Fado” (2009), Carminho tem vindo a traçar um percurso de excelência, reconhecido com inúmeros prémios e atuações nos mais prestigiados palcos mundiais. A sua voz, de timbre quente e expressivo, possui uma maturidade rara, que lhe permite navegar nos fados tradicionais com uma autenticidade comovente, e participar em colaborações audazes que a levaram a cantar com artistas brasileiros como Chico Buarque e Marisa Monte, ou, mais recentemente, no álbum de Rosalia, “Lux”. No entanto, é em “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” que a sua visão autoral e estética atinge um novo patamar de profundidade e experimentação.
O título do álbum, uma frase de um inédito de Carlos Barrela, sintetiza a tensão emocional que percorre o fado e a própria condição humana: a escolha entre a “morte de amor” tradicional ou a “resistência”. A fadista, que pela primeira vez assume a produção integral do seu disco, explora o conceito de “a voz” em múltiplas dimensões: como instrumento técnico, como legado ancestral e como expressão mística. O álbum torna-se um manifesto sobre a mulher: a mulher fadista, intérprete e criadora, e a mulher mística, conectada com o intangível. A inovação de “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” reside na forma como Carminho entrelaça a tradição com a vanguarda sonora. Este não é um álbum de fusão mas sim de “abertura”, onde a emoção do fado acolhe texturas e influências que lhe ampliam o campo expressivo sem comprometer a integridade; é o exemplo máximo desta vontade de cruzar mundos e gerações, fortalecendo a imagem de Carminho como uma embaixadora cultural que leva o fado para o século XXI sem receios. A própria Carminho descreve o seu trabalho como o de uma artesã, que trabalha “sobre o fado, com as mãos”, transformando-o sem o desvirtuar. Este compromisso com a experimentação é sublinhado por participações notáveis, como a da artista performativa e pioneira da música eletrónica Laurie Anderson, que faz um contraponto sussurrado em inglês no tema “Saber” (música de Carminho para um poema da experimentalista portuguesa Ana Hatherly), um dos singles do álbum. A presença de Anderson e a influência da compositora Annette Peacock refletem o olhar de Carminho para as mulheres que, na história da música, ousaram romper padrões estéticos e emocionais, usando a voz feminina como ferramenta de liberdade e transformação. “Sem elas, eu não teria feito este álbum,” afirma Carminho, sublinhando que a sua voz carrega consigo a ancestralidade de todas as cantoras que a precederam.
Com oito das onze faixas assinadas pela própria artista, o álbum é profundamente pessoal e abertamente feminista, questionando e reinventando as narrativas tradicionais do fado. A mulher ocupa um lugar central, explorando-se as suas narrativas paralelas e ambíguas. O álbum é um diálogo entre o passado e o futuro, o amor e a resistência.
“Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” é a obra de uma artista no auge da sua maturidade criativa, que não tem medo de expandir as fronteiras do fado para garantir a sua permanência e relevância no século XXI. Ao abraçar a experimentação e a perspetiva feminina, Carminho entrega-nos um disco poderoso, que não só presta homenagem à tradição, como a catapulta para o futuro. Não é apenas um álbum de fado; é, como sugerem os críticos, o mais poderoso álbum que o género nos ofereceu neste ano, consolidando Carminho como uma embaixadora cultural de Portugal, com a visão de quem transforma a herança em vanguarda. A minha nota final acerca desta obra prima: este álbum de Carminho, “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir”, passa a fronteira da definição do que é beleza, apresentando-se como uma experiência de escuta absolutamente divinal e completa. Desde a primeira escuta, senti-me irremediavelmente atraído pela sua profundidade e coragem estética. A voz de Carminho é, como sempre, um universo em si, quente e carregada de uma maturidade expressiva rara, mas aqui assume uma nova dimensão, que confere uma textura inesperada ao ambiente tradicional das guitarras. O resultado é um som que te envolve, ideal para uma manhã chuvosa, onde a melancolia se mistura com um sentimento de força e resistência. As letras em particular o lado feminista e a exploração da “mulher mística”, tornam a obra profundamente pessoal e relevante. Não é apenas um álbum para ser ouvido; é um disco para ser sentido, uma declaração sobre a dualidade humana: a entrega total ao “morrer de amor” e a urgência de “resistir”. É, sem dúvida, um dos mais belos e poderosos álbuns que ouvi nos últimos anos, um marco que prova a vitalidade e a capacidade de transformação do fado.
Paulo Perdiz/MS







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