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“Caretos da Lagoa”: A Lenda e a Tradição da Campina

Fotografia CARETOS DA LAGOA 202284

 

Caretos da Lagoa é um documentário de Tiago Cerveira. O documentário relata as figuras principais do Carnaval da gândara portuguesa. Com a sua lente, Tiago Cerveira captou a transformação, os rituais transmitidos de pais para filhos e a aparição no tempo do Carnaval. Com o rosto tapado por uma máscara, de onde sobressaem uns enormes chifres e muitas cores nas fitas que a adornam, o grupo de homens assusta as raparigas que conseguem apanhar para, logo de seguida, lhes fazer alguns mimos, pelo menos às que permitem. José Moreira, ele próprio careto, é um defensor desta tradição e figura principal deste filme.

caretos - milenio stadium
Tiago Cerveira (à esquerda) e José Moreira (à direita). Créditos: Camões TV

Milénio Stadium: José Moreira, como é que te tornaste careto?
José Moreira: Então, eu tornei-me careto aos nove anos e tudo começou num período em que os caretos estavam sem sair há cerca de três anos. O meu tio sapateiro, na altura, decidiu reativar os caretos e pensou em juntar os jovens lá da terra, todos na altura com nove anos, e introduzi-los na tradição. E foi assim, dessa forma, que eu comecei a ser careto.

MS: Qual é a sensação que te invade quando colocas essa máscara? Não é bem uma máscara, porque tu não gostas muito dessa palavra, não é?
JM: Não sai da gente…não se chama máscara, chama-se campina. E, de facto, há pouca gente que é capaz de explicar por palavras qual é que é a sensação. Eu faço às vezes um esforço para o conseguir e é difícil. Nós temos uma tradição em que temos o registo fotográfico mais antigo, que é de 1940, que são seis caretos que ninguém sabe quem são. Carregar uma tradição destas às costas e nos manifestarmos num grupo com a cara totalmente tapada com chocalhos, onde a correria é o nosso forte, é uma sensação incrível. É um transporte para, digamos, outra dimensão, porque o cansaço acumula-se, bebe-se álcool, não se sente dor, os chocalhos batem-nos no corpo, mas nós não fazemos caso disso… quando colocamos a campina na cabeça, em que a visão é pouca e a respiração fica ofegante, a adrenalina é total. Somos outra gente, sentimos um poder fora do comum, como se não fossemos deste mundo.

MS: São seres fantásticos transmitidos de pais para filhos, isto é, de geração para geração?
JM: Sim, é. Antigamente quem saía era só os jovens solteiros e a partir do momento em que casavam, deixavam de sair. Houve sempre um esforço para passar de pais para filhos, sim.

MS: Estamos a falar de uma tradição. De onde vem a verdadeira origem e o significado dos caretos?
JM: Não há registos. Nós não sabemos. Existem muitas teorias, mas de facto a gente não sabe qual é a origem. Não há festa religiosa na nossa terra, mas existem os Caretos da Lagoa.

MS: Este documentário, Tiago, é útil para não ficar esquecido. É um documento histórico precisamente para as gentes da Lagoa?
Tiago Cerveira: Sim, eu acho que acima de tudo o poder do vídeo do documentário neste caso em específico, tem um papel atual imediato, que é o de promover, ou seja, de mostrar. Até porque agora, há três ou quatro anos para cá, vivemos em Portugal com as atenções muito viradas, dado o reconhecimento do património da UNESCO. Do caso específico de Podence que, a meu ver, acaba por fechar as portas ao reconhecimento ou ao mesmo tipo de reconhecimento de outros rituais paralelos àquele. Este documento audiovisual é mais um elemento de comunicação para se olhar que na região de Mira também existe uma tradição, uma celebração do que é este Entrudo à portuguesa…o verdadeiro Entrudo português. Depois tem esse caráter documental que esperamos que daqui a 10, 15, 20 anos se veja que houve pessoas como o Ti Cuco como pessoa que foi importante para os Caretos, que infelizmente pela natureza, acabam por desaparecer.

MS: Isto não é uma máscara, é uma campina?
JM: É assim. A minha teoria é, aos meus olhos, que uma máscara esconde e a campina não esconde. Ao longo destes anos percebi que a campina, em vez de esconder, ela revela os traços de personalidade do careto, porque a campina é feita pelo próprio careto e eu defendo isso. Ela deve ser feita pelo próprio careto. Aliás, eu até defendo que ela deve ser construída com materiais simples, porque se permite que apareçam sempre campinas diferentes. E voltando à questão, quando o careto a está a construir e a pintar, ela está a revelar os traços de personalidade dele e, por vezes, até revela o estado de espírito do careto.

MS: Como é que os caretos avaliaram este documentário? Como é que viram este documentário do Tiago?
JM: É assim, todos os trabalhos que são feitos em volta dos caretos ficamos sempre gratos e vemos com bons olhos, obviamente. Até porque nós também queremos que os caretos se projetem no mundo e que toda a gente fique a saber que Lagoa, nesta pequena aldeia, existe esta tradição que é a tradição mais a sul de Portugal e da Europa.

MS: Quem não gosta muito dos caretos são as mulheres, não é?
JM: É verdade, porque esse é um dos nossos rituais. Nada contra o sexo oposto, mas temos os rituais mais básicos comparativamente com outros grupos. Fomos percebendo ao longo dos anos… só podem sair homens, mulheres não são aceites no grupo. E além disso, e já agora, vou-me prolongar aqui também em relação aos rituais, nós temos outro que é o levantar da saia, mas isso é direcionado para as pessoas idosas da aldeia e ainda o nosso som gutural que fazemos.

MS: Tiago, tu andaste na rua da Lagoa à procura de histórias. Sente-se os sentimentos, os sons da Lagoa e dos caretos neste documentário?
TC: Pelo menos tentei. Sim, isso foi basicamente o grande objetivo. Não foi por falta de conteúdo, a dificuldade foi fazer essa tal gestão. O que sair, porque gostamos de certas cenas, mas depois elas não encaixam. Mas sentimento e tradição estão bem no filme.

MS: Este suporte documental foi uma encomenda do município de Mira, mas vai andar nas bocas do mundo?
TC: Aqui é o primeiro pontapé de saída. Passe a redundância, é o pontapé de saída internacional através da Camões TV, da Camões Rádio e aqui do Jornal Milénio Stadium a quem muito agradeço. Estamos a inscrever o filme em festivais em todo o mundo, onde nós achamos que o filme pode encaixar, porque cada festival tem o seu perfil documental de temática rural. Ou seja, estamos a fazer sempre uma pesquisa de onde é que devemos candidatar o filme. Ser escolhido no meio de muitos, só isso já é uma vitória. Estar numa seleção num festival de candidaturas com 3, 4, 5000 filmes e chegar aos melhores 10 melhores, já só por si, acho que é espetacular. Se depois de o júri decidir atribuir prémios, isso aí, então sim.

MS: José, tens o peso de carregar uma tradição e tens um orgulho enorme?
JM: Eu tenho um grande orgulho em carregar esta tradição. Não sou eu o único que carrego, porque sozinho não tem valor. E agora sinto que é uma grande tradição e isso tenho orgulho. Um orgulho enorme nos Caretos da Lagoa, em ser o grupo mais a sul da Europa. O grupo de caretos que tem os rituais mais básicos… penso muitas vezes se nós não teremos sido a primeira manifestação.

Paulo Perdiz/MS

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