Entretenimento

A intuição feminina embarcou na mala de cartão

Humberta Araujo

E aqui encontrou também um lugar de apoio, de irmandade e de segredos

“Com chá de tília
Me desembarguei de ti
Meu amor, que já me
Amargavas tanto!”
1990

Chá para os amores. Ervas para as dores. À sua porta batiam homens e mulheres procurando os murmúrios secretos das plantas: curas para os males do corpo e da alma.
«Isto é assim. Se queres um bocadinho de chá vens ter comigo e eu dou-te, e digo-te para que é. Se tu tens bom olho, eu digo-te. Se tens mau olho, também. As dificuldades na vida, todos têm…e elas vêm ter comigo, porque querem saber. E eu vou dizendo sobre coisas…mas não digo tudo…não! Eu tenho dó das pessoas. Se me pedem um favor eu tenho que fazê-lo. Escuta cá piquena, tu queres saber tudo? Então, eu tinha 30 anos…” Assim começou a nossa conversa, já lá vão alguns anos, quando desci a Santa Bárbara, ilha de Santa Maria, à procura de perceber esta secreta ‘profissão’, que um dia encheu os céus de cheiros e fumos vindos dos corpos das muitas mulheres queimadas pela inquisição. A sua fama era conhecida e eu não deixei que o tempo levasse consigo este saber, sem que eu o arrebatasse, de forma cruel talvez, porque a minha curiosidade tinha pouco de humildade, e muito mais de um agnosticismo em fase de maturação e em constante procura. Os segredos da Senhora Virgínia fazem parte do seu DNA mitocondrial materno, que como se sabe é o único que passa de geração em geração, reavivado e aprendido no mistério dos silêncios maternos. Virginia foi cultivando os dons da transparência, da intuição, e da sensibilidade, desde aquele momento em que descobriu que não vivia só.
“Corri os médicos em S. Miguel. Ninguém me deu cura.(…) Aquilo vinha descansar em mim (…)”
Não deu nome à estranha entidade que diz, um dia, se veio apoderar do seu corpo. “Decidi então ir ao cabreiro…era um home do Nordeste. Deu-me então um chá…eucaliptoalvas e água salgada…e disse-me para levar umas defesas. Ande sempre com isso, disse-me ele. Você também pode andar com umas defesas…sabia? – disse-me ela, naquele dia em que nos encontramos, pela primeira vez, na bela encosta barbarense.
«Se eu tivesse sabido naquele tempo eu tinha levado um raminho de alecrim, um raminho de rosmaninho e uma denta d´alho. Não se tire o vermelho. Aquele mau olho não entra na gente. O alho e as outras coisas não deixam entrar. O cabreiro ensinou-lhe que em cada uma de nós há um médico. ”
Crê com toda a honestidade no benefício das plantas da terra. Segue um pouco a tradição deste milenar e misterioso conhecimento, tão “vintage” e tradicionalmente conferido à mulher, que pelo facto de o possuir e de o utilizar, fê-la um dia vítima das maiores atrocidades no decurso da nossa história. Lembremo-nos, por exemplo, da Inquisição. Apesar dos anos e das lições da história, ainda hoje estas mulheres são vistas com desconfiança e até com medo.
“A gente se vai a dizer isto hoje, vão fazer escárnio…ainda chómin a gente de tolas. Eu não sou tola…não! Não! Eu fiquei bem discreta. ”
O cabreiro do Nordeste fê-la descobrir dons que desconhecia possuir. “Ele disse-me que eu havia de ser desonrada por muita gente. ”
Apesar desta ‘desonra’ vai muita gente à sua porta para escutar a sua sabedoria, pois que tudo se deve ao dom da escuta, apesar de Virginia ser uma mulher que a vida muito ensinou. Da escola nada aprendeu.
“ Minha rica senhora. Sou estive três meses na escola, acolá do Norte.”
Homens, mas sobretudo mulheres vão à sua casa para falar…desabafar as dores do coração e do corpo, pois afirma conhecer o íntimo de cada pessoa.
“Eu sei se a pessoa rói o meu nome pelo caminho. Mas eu não descubro nada. Guardo para mim. Só que às vezes…elas chegam à porta e eu mando-as embora. Não se as quer. Porque elas vêm experimentar, ” o que parece significar que basta sentir um coração descrente ou maldoso para que o mesmo não tenha direito à intimidade dos seus saberes. Só quem vem com o coração aberto, tem lugar ao seu cantinho mágico.
Para a investigadora Cassandra Eason «as mulheres servem-se de poderes naturais intuitivos, não para apelar a divindades do Além, mas sim para concentrar as suas próprias energias, de modo a facilitar a sua vida quotidiana e o seu relacionamento com as outras pessoas. Mais importante ainda, é o facto de que todas as mulheres, e não apenas aquelas que adoptaram um caminho deliberadamente psíquico ou espiritual, possuem grandes recursos de sabedoria interior e um ´radar inconsciente´ capaz de captar pistas de que a mente inconsciente não se apercebe.”
Receita de xarope para toda a família. Em cada um dos ingredientes há que separá-los por uma camada de açúcar: agrião, cenoura, orégãos (marienses), poejo, hortelã-pimenta, alecrim, rosmaninho, alho, laranja, tangerina, limão, branco. Deixa-se destilar. As ervas são depois fervidas durante 10 minutos. Queimam-se depois carrilhos vermelhos no lume e deita-se um pouco de açúcar por cima. Seguidamente, o chá fica abafado de um dia para o outro. Coa-se e juntasse-lhe um cálice de aguardente ou brande. Vai para o frigorífico. Depois é só tomar um cálice por dia deste tónico caseiro”.
Matar…não mata! Assegura a nossa deusa dos saberes, pois o chá e os xaropes caseiros são a receita base para as curas, diz-nos.
“Nossa Senhora curou o seu filho foi com chás. Curei-me foi com chás caseiros. Esta crença veio ter comigo, quando eu já estava desenganada dos douctores.”
À porta da Virgínia muita gente começou a chegar depois da sua vinda de S. Miguel. Os chás são os seus únicos remédios, mas só quando a doença não é de médico. Para os outros males, o ouvido para escutar, é o melhor medicamento. Virgínia sabe ouvir. Bem-humorada, descobre à primeira as malandrices das raparigas namoradoras e, depressa reconhece as dores do coração. “Se a gente quiser botar um home ao mar a gente pode. ”
Aqui nada de novo, pois antes deste trabalho, já o meu amigo Pedro, me afirmava convicto, que as mulheres fazem tudo o que querem de um homem. Eu por mim não vou muito nessa, embora tenha presenciado já bons e maus milagres, resultantes desta dependência. Mas lá, quanto ao poder das mulheres, Virginia e Pedro, os dois parecem estar de acordo.
“Tu queres pôr um home ao mar?” Ela pergunta-me.
– Eu? Não senhora que eu não tenho nenhum! respondi-lhe com uma gargalhada, embora houvesse alguns que bem me apetecia largar ao mar.
– Escuta cá piquena…
Fica por aqui a conversa. Não quererá o leitor saber da minha vida privada daquele tempo, espero.
Virgínia cuida das suas terras. Das suas vacas e dos seus bezerros. “Logo de manhã vou para as vacas com o meu rapaz terminar para aqui ou para acolá, de pasto para pasto. Também pego na máquina…também roço. Fazer a vida. Cuido também das coisas para a gente comer: couves, batatas, cenouras…Tá vendo aquela terra ali? Não posso fazer nada para comer porque aquela terra está ganhando. Só se pode fazer cilhage, que é milho para o gado comer. Agora com o mau tempo fiquei sem nada…cebola, cenouras, batata… queimaram tude. Fiquei sem nada. ”
“A que horas é que a senhora se levanta?”, pergunto-lhe.
“Logo de manhã…pensa que estou a aquecer o cu na cama c´ma tue? Não querida. Sóóó…. Levanto-me seis, sete horas. Arremato o meu filho. A gente toma o pequeno almoço e vamos para as vacas. Os animais são para a carne e o leite é só para os bezerros mamare.”
Mas o trabalho não é tudo na vida de Virgínia. E, porque a cantiga alegra a alma e traz aos mais novos ecos de outros tempos…

«… que aqui vem chegando
quem me quere ouvir cantare
que aqui vem chegando
quem me quere ouvir cantare.
Sua mão lhe vou pedire
também quero cumprimentare.
tua mão te vou pedire
também te quero cumprimentare»

As orações definham as horas…

“…água benta preciosa
que lavais os pés a Cristo
lavai os meus pecados
como agora digo isto.
Senhora mas eu hei-de
lavar estes pés?
Beijarei santa pedra
que a minha água não se perca
beijarei a Santa Cruz
que me dê luz
Amém Jesus.
“Eu tenho tantas orações. Eu aprendi estas orações tinha oito anos. Com a minha avó. E cantar…cantava com meu pai que era cantador…«meu pai era cantadore…e minha mãe cantadeira. E sou filha deles ambos, e canto da mesma maneira. ”
O sol derrete-se no horizonte. A poesia falta para tamanho encanto. Santa Bárbara despede-se de mais um dia louvado. A ceia está perto. Virgínia antes de fechar a porta vai olhar uma vez mais o vale, cheirar o funcho e os orégãos. Derrama um derradeiro olhar aos animais que descansam. Eu ouço a sua voz de cantadeira…
“Tu pediste-me a mão direita
nem se a esquerda te dou-a.
A direita já está dada
A quem primeiro falou-a.
Quando eu entrei para aqui
Foi com licença de uma hora
Lá vai uma, lá vai duas
Com licença vou-me embora.”

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