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Enquanto o amor durar…

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Como se pode definir hoje a família? Como se estrutura ou desestrutura? Maria João Valente Rosa, socióloga e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-nos algumas pistas para entendermos como devemos olhar hoje para este conceito (família) muito abstrato, plural e muito diverso, que não se pode encaixar num padrão único. Para Maria João Valente Rosa o pilar das famílias de hoje é a afetividade. É esse o elo que as mantém unidas… ou não.

Maria João Valente Rosa: - MILENIO STADIUMA família

Milénio Stadium: Como socióloga gostaria de começar por lhe perguntar: o que é hoje a família? Como se estrutura e que valor tem para a sociedade?
Maria João Valente Rosa: Bem, tudo depende dos “óculos” de cada um. As culturas são muito diferentes e por isso não podemos falar de uma sociedade como um todo, em que todos pensam da mesma maneira e que se comportam da mesma maneira. Mas eu vou tentar falar um bocadinho naquilo que tem a ver um pouco com esta sociedade do mundo mais ocidental, se quiser. E relativamente à família, também é preciso dizer, que é um conceito relativamente abstrato. E eu começo por dizer, que eu vou falar essencialmente da chamada família nuclear. Porque há vários tipos de família. Quando me perguntam o que é hoje a família, eu diria que hoje entendo a família como, acima de tudo, uma junção de indivíduos adultos que coabitam unidos por laços afetivos. E isto é muito importante. Claro que no caso de existirem crianças, os adultos também são responsáveis pelo seu cuidado. Portanto, as famílias hoje estão sustentadas ou alicerçadas na afetividade. Quando falamos em termos concretos sobre famílias, entendo-as hoje como uma junção ou uma estrutura que não é perene, ou seja, não há garantia que dure para sempre. Portanto, hoje a família não é perene, a sua composição é plural e muito diversa. Daí que falar de família no singular faça cada vez menos sentido. E faz cada vez mais sentido falarmos de famílias no plural, porque elas assumem formas muito diversas que se vão de algum modo desenhando ao longo da vida dos indivíduos. Temos famílias constituídas por adultos que podem ser hoje de sexo diferente ou do mesmo sexo, casados ou não casados, com ou sem filhos comuns. Os tais meus, teus e nossos que já contam ou não com uma história de relacionamento anterior. As chamadas famílias recompostas ou reconstituídas de adultos, às vezes que até integram duas ou mais famílias, são as chamadas famílias múltiplas, ou podemos ainda falar também de um outro tipo de família, que são as famílias monoparentais, que são constituídas por um dos progenitores que coabita com um dos seus descendentes. Estes são apenas alguns exemplos.

MS: Podemos concluir que a principal diferença que pode ser apontada entre as famílias de hoje e as de há 30/40 anos tem a ver, exatamente, com essa multiplicidade de núcleos familiares que podem ser hoje encontrados e que, noutros tempos, o conceito de família era muito mais fechado num só modelo ou em modelos muito parecidos uns com os outros?
MJVR: Acho que o que se pode concluir daqui é que, por um lado, hoje a individualidade e a afetividade/amor e ganham um papel crucial no entendimento das famílias e que, no passado, era a organização, uma instituição. E esta instituição tinha mais força do que a afetividade e a individualidade. Ou seja: o casamento era essencial; a família tinha a missão de ter filhos, portanto, a reprodução e a procriação. Estamos a falar de um passado, mas atenção porque muitas vezes simplificamos demasiado o passado. Quando olhamos para trás, para as tais famílias, (que ainda continuam a existir, claro), o que vemos é que há aqui uma mudança. Uma mudança de um padrão rígido de família, para uma realidade onde não há um guião único para uma família nascer. Portanto, há muitas formas, há muitos guiões para se ter uma família. Não há aqui uma regra, não é? E a regra é cada vez mais a exceção. Portanto, eu diria que a família não está em crise. As famílias hoje acabam por estar muito baseadas na afetividade. Acaba por constituir, no fundo, um lugar de segurança, de bem-estar, de realização pessoal e também emocional. Enquanto o amor durar.

MS: Então é isso também que faz com que mais facilmente, ou se calhar, de uma forma mais natural, a família acabe por se desestruturar quando a afetividade ou o amor deixam de existir?
MJVR: Eu diria que o divórcio também pode dar origem a que novas famílias surjam e por isso, eu sei que isto é um bocadinho complicado de se dizer, mas a falta de bem-estar pode estar na origem de alguma vitalidade. Ou seja, o divórcio não está a arruinar as famílias. O divórcio pode estar a pôr em causa uma família que nós temos na cabeça, que é uma família que se estruturava através de um casamento que tinha uma finalidade, que era a finalidade de reprodução, onde o pai tinha um papel, a mãe tinha um outro papel, a mãe mulher. E, portanto, a afetividade aqui não era o elemento-chave, era um elemento, um outro. Não era acessório, mas era um elemento que não era o crucial para que as pessoas se mantivessem unidas. Havia interesses vários, inclusivamente interesses financeiros. Portanto, a família era uma combinação de interesses, organizada, em que a parte afetiva e a parte emocional contavam muito pouco. O indivíduo em si era menos importante que a estrutura que o englobava. Atualmente o que se assiste é ao contrário, ou seja, estamos perante famílias em que o indivíduo assume uma importância muito importante, muito grande. E a afetividade é o elemento-chave. Deixa de existir a afetividade, o amor ou o que se quiser chamar e as pessoas saem daquele lugar e tentam ser o mais felizes possível, do ponto de vista individual. Portanto, a família é um projeto de felicidade, que não as barreiras sociais que tinha. E não está sedimentada em instituições tão fortes quanto o era, por exemplo, o casamento.
Eu hoje, ao nascer, posso ter múltiplas famílias dentro deste conceito, enquanto que no passado era muito mais difícil ter múltiplas famílias dentro do tal guião quase único que nós tínhamos nas nossas cabeças. O que não significa, mais uma vez, que fosse esse o único guião que existia, mas era o guião-padrão, não é? E quando alguém não seguia este guião era visto como bocadinho estranho. Hoje em dia os guiões são vários.

MS: Nessa linha de pensamento de vários guiões, vários modelos, várias famílias, é assim que as famílias mistas, de etnias diferentes, de religiões diferentes, surgem também com alguma naturalidade, mesmo nas comunidades ainda um tanto conservadoras? Há uma evolução na mentalidade?
MJVR: Estas famílias estão a acompanhar a mudança dos tempos. Hoje tudo é muito diferente do que era, não existe o tal padrão único, existem múltiplos. É claro que as famílias têm um valor, que é a segurança, o tal lugar de bem-estar, se quiser, e mesmo de realização pessoal. Mas também a família tem um outro papel que tem a ver com as crianças, no caso de elas existirem. Para as crianças, a família continua a ter um valor importante por ser a primeira instituição responsável pela socialização de cada um de nós. E é aí que se inicia a relação com os outros. Mas é na escola que a criança começa a desenvolver os seus valores, os seus hábitos, formas de viver em sociedade, etc. Portanto, a família, seja de que tipo for, também tem esse papel, mas a escola é a primeira instância de socialização.
Eu diria que não é pouco frequente que a família cultive no seu íntimo, aquele espaço que é um espaço privado, um carácter relativamente conservador, no sentido em que leva os seus membros (crianças) a reproduzirem um bocadinho os hábitos e as formas de pensar. Portanto, acaba por ser um núcleo que vai contribuir para a propagação de valores, de crenças, de marcas culturais, seja o que for. E, muitas vezes, esse papel não acompanha as mudanças rápidas que estão a acontecer na sociedade. Vivemos numa era de mudanças muito aceleradas, e acontece que, muitas vezes, a diferença relativamente ao padrão (por exemplo, da questão cultural quando falamos de etnias, religiões diferentes, etc.) é entendida como uma ameaça. Tudo o que é diferente, ou seja, tudo o que não reproduz aquilo que nós achamos que são as regras essenciais para se ser feliz.

MS: Mas então há ainda um caminho a fazer?
MJVR: Sim, e é um caminho que tem que ser trilhado através da escola. Ou seja, não é na família que nós vamos esperar grandes mudanças. A escola é, na minha perspetiva, a instituição essencial, chave, se quiser, para abrir os horizontes em vez de os fechar, neste processo de abertura ao outro, em que a diversidade vai aumentando.

A família e os exemplos das figuras públicas

MS: Temos assistido nos últimos tempos à revelação de pormenores da vida mais oculta da família real britânica, nomeadamente com a publicação do livro de Harry, mas também outras famílias de figuras públicas (Shakira e Piqué, por exemplo) têm publicamente mostrado as suas fragilidades, revelando os inúmeros problemas que, durante anos, se mantiveram encobertos. Sendo certo que este tipo de situações não são novas, a dimensão mediática que as caraterizam, fazem-nos perguntar – até que ponto estes exemplos podem influenciar a sociedade de um modo mais global? Serão encarados como mais um motivo de diversão para quem aprecia saber da vida alheia ou podem ter um efeito mais pernicioso e mudar a forma como a família é olhada?
MJVR: Os podres em termos familiares sempre existiram em todas as eras, não é? Por outro lado, não se trata de um problema do “mensageiro” (não podemos matar o “mensageiro”, não é?), mas antes da abrangência que os mensageiros hoje têm, que não tinham no passado. Mas a exposição pública do nosso privado, diria eu, é que é relevante. Ou seja, cada um de nós, até por aquilo que colocamos nas redes sociais obre nós próprios, expomos publicamente o nosso privado. No caso antes desta história da família britânica o que achei interessante foi perceber que estas famílias, mesmo estas tão tradicionais, que também elas não congelaram no tempo, ou seja, não foram imunes à mudança dos tempos e também já não estão a ser imunes a afetividade e a emoção. Portanto, pensamos assim: afinal, não há aqui nada que esteja neste momento congelado ou em cápsula, não é? Portanto, é uma abertura dos tempos desta cápsula. Se quiser, partiu. Para mim, o interessante da história é perceber que já nem aquilo que nós achávamos que estava encapsulado resiste à mudança. A cápsula que é casamento para a vida, em seguida, ter filhos, enquanto a morte não nos separa. Isso já não faz sentido. Os dias correm e nós temos que pensar que a mudança acontece.

A família, a mulher e o caso de Jacinta Arden

MS: Ainda olhando para as notícias da atualidade, recentemente a primeira-ministra neozelandesa demitiu-se e entre outros argumentos (como falta de energia e cansaço) disse que precisava de dedicar mais tempo à família. Podemos ver neste caso algum sinal de fraqueza da Mulher e um certo retrocesso na luta das mulheres pela igualdade de oportunidades relativamente aos homens? Pode Jacinta Arden, com a sua decisão, estar a dar argumentos a quem defende que a mulher não pode assumir determinadas posições porque a sua função de mãe (como pilar da família) a torna mais suscetível e frágil?
MJVR: Eu não consigo ir tão longe. Bem, para já, nós sabemos que estamos muito longe de uma sociedade igualitária entre homens e mulheres, mas as mulheres têm entrado com muita força no espaço público, embora muitas vezes saem sem o devido retorno, mas têm entrado com muita força no Estado, no espaço público. Os homens não entraram com a mesma intensidade no espaço doméstico. Isto começa a ser uma questão importante, que é a questão da conciliação de tempos, para o caso das mulheres/mães. Às vezes não é não é dito, mas às mulheres/mães cabe-lhes a maior responsabilidade pelos filhos, valor que não é só alimentado pelos homens. Não são só os homens, são os homens e as mulheres. Aliás, um inquérito realizado em Portugal dá conta mesmo disso – as mulheres acabam por sentir uma enorme responsabilidade sobre elas em relação aos filhos que têm e por isso, quando também têm projetos profissionais importantíssimos, há uma culpabilidade que recai sobre elas “se calhar não estou a ser boa mãe”. E abraçar os dois projetos – profissional e familiar – é extremamente difícil em termos de uma equação. Temos, de um lado da equação o ser bom profissional. Temos o outro lado da equação ser boa mãe e ser boa mulher dentro do espaço doméstico. Portanto, há nalguns casos, a evolução não se fez de maneira a que os papéis estivessem tão ou de algum modo equilibrados. Ou seja, as mulheres são hoje, são diferentes do que eram no passado, mas no espaço doméstico, como mães, continuam a ser vistas muito como eram no passado e por isso não houve aqui uma evolução desse ponto de vista.
Agora vamos ao caso concreto… reconhecer que tal acontece e que é difícil essa conciliação entre dois projetos familiar e profissional, pode, na minha perspetiva, constituir um alerta público extremamente importante, que até pode ajudar a causa igualitária. Ou seja, eu acho que negar ou fingir que o problema não existe, é a pior forma para se chegar a uma solução. Portanto, isto até pode motivar algum desconforto. Também há um outro aspeto que eu acho importante é o facto de uma pessoa reconhecer que não tem mais energia. Para mim não é um sinal de fraqueza, é um sinal de força, de força no sentido da responsabilidade que ela tem para exercer determinado tipo de funções públicas. É este facto de reconhecer que não tem mais energia para continuar é algo que enaltece a pessoa, não a menoriza. Só é pena. É isto a enaltece enquanto ser humano dedicada à causa pública. Só é pena que, no caso dos homens, tal não aconteça do mesmo modo – quando sentem que não estão à altura e são tantos que nós sabemos, independentemente das questões familiares, pelas questões de competência e capacidade, sabemos que há muitos que estão ali, mas que não deviam estar e não saem. Porque um homem também, mais uma vez, é ensinado a não sair perante algo que é adverso.

A família e a sua condição social

MS: Nas famílias de mais baixa condição social (pobres e sem grande formação) parece haver quase que um destino marcado… e muito dificilmente os filhos e até netos conseguem romper com essa aparente inevitabilidade de viverem com as mesmas dificuldades que os seus antecessores. Por que razão isto acontece e o que deveria ser feito para contrariar esta tendência?
MJVR: A OCDE em 2018 fez um relatório chamado A Broken Social Elevator How to Promote Social Mobility e é interessante perceber quando olhamos para a mobilidade social e intergeracional que parte inferior dos pisos, o chão, é muito pegajoso, ou seja, a pessoa fica muito agarrada àquele ambiente onde nasceu, impedindo-a de subir. Mas na parte do teto também, na parte dos tetos lá em cima, também. Eles são muito pegajosos, dificultando que aqueles que se encontram lá em cima caiam para níveis muito baixos. Portanto, temos um elevador de mobilidade social que está muito, muito estragado. em termos de de e voltamos a onde voltamos.
Mais uma vez a resposta é a escola. Ou seja, a escola tem que ter aqui um papel essencial. E não é à família que se tem de pedir isto. A escola tem que ter um papel essencial como corretor das desigualdades sociais. Ter a sorte ou o azar de nascer num berço ou noutro, isto condiciona imenso o seu futuro ou também nascer aqui numa região da Europa ou da América do Norte ou na China, uma região da África subsariana. Isso condiciona muito para a vida. Claro que existem exceções, mas não são as exceções que neste caso vêm. É a escola, na minha ótica, o nivelador. De outra maneira nós não conseguimos sair deste círculo vicioso que se autoalimenta. Eu lembro-me de uma frase muito bonita de um jornalista americano que nasceu no início do século, chamado Sidney J. Harris, que diz o seguinte: “O grande objetivo da educação é transformar os espelhos em janelas”. Isto que é um bocadinho o leitmotiv de toda a história que eu quis contar.
A educação é a peça-chave e a família, muitas vezes, é um espelho e não é uma janela.

MS: O que se quer é que as janelas sejam abertas…
MJVR: Exatamente e que não continuemos a funcionar em espelhos, como funcionávamos no passado.

Madalena Balça/MS

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