Temas de Capa

Venha o diabo e escolha

Outubro marcou Portugal e irá marcar Canadá nos próximos anos, devido à realização de eleições que determinarão a constituição de um governo nos dois países, muito provavelmente, com representação minoritária no parlamento.

Se por um lado em Portugal era esperada a vitória do partido em governação nos últimos quatro anos, no Canadá a luta está a ser bem mais renhida, tudo apontando, contudo, que haja também uma vitória do partido em governação por uma margem mínima.

Como imigrante radicado no Canadá, acompanhei, com algum interesse, a campanha política nos dois países. O meu interesse foi além do habitual escrutínio das propostas (ou falta delas), que cada um dos partidos tinha para apresentar. Interessou-me perceber o caráter de cada um dos intervenientes, das suas campanhas políticas, das promessas e discursos ao longo dos últimos anos e tentar perceber a razão pela qual a sociedade em geral se sente cada vez mais dissociada dos políticos e governantes e o aumento exponencial da abstenção um pouco por todo o lado (curiosamente a última eleição federal no Canadá não acompanhou esta tendência).

Não é minha intenção dissecar números, mas parece ser evidente e consensual que a abstenção teve um aumento generalizado, acentuando-se nas camadas mais jovens da sociedade, levando a um desinteresse e dissociação, por parte da sociedade, da vida política e, em consequência, dos destinos que regem o futuro de qualquer país democrático.

Facilmente se percebe, pelas habituais “conversas de café”, que o descontentamento é generalizado, independentemente da cor do partido ou intervenientes que regem os destinos do país. Os números do descontentamento, como gosto de lhes chamar (abstenção e votos nulos), só são importantes, erradamente, nas semanas de campanha e no dia das eleições, sendo imediatamente esquecidos no dia seguinte.

Olhando para Portugal e para os casos relatados pelos meios de comunicação social, facilmente se percebe que o descontentamento é justificável e não pode ser ignorado. Casos como o descalabro do BES, o escândalo de Tancos, as ligações familiares dentro e fora dos corredores do poder, os favorecimentos, a demagogia de propostas políticas que todos sabem nunca poderão vir a ser aplicadas e a diferente narrativa dependendo do lugar em que ocupam no parlamento (poder ou oposição), são factos que não podem ser escamoteados ou facilmente ignorados pelos cidadãos.

No Canadá a situação não é muito diferente. Como se consegue esquecer que um primeiro-ministro tentou influenciar uma investigação e favorecer uma empresa multinacional? Como podemos não reparar no caso Blackface? Como nos podemos alhear da falta de coerência no discurso do líder do principal partido da posição e ignorar o facto de ter dupla cidadania? Como se pode entender a demagogia por trás de duas semanas de promessas inexequíveis por parte de todos os partidos no poder, apesar dos números alarmantes do défice do país, ou a total ausência de propostas concretas no que toca à proteção do ambiente, ou uma opinião objetiva sobre a famosa Lei 21 e os oleodutos? Se recuarmos sensivelmente um ano, e apesar de ter sido para as eleições provinciais, todos nos lembraremos que foi eleito, com grande euforia, um líder para o Ontário que tinha como slogan “For the people”. Hoje, gostaria de lhe perguntar de que povo estaria ele a falar nas eleições de 2018.

É notável, contudo, a aparente abertura à opinião pública por parte da classe política para debater todo e qualquer assunto, tendo desenvolvido uma capacidade extraordinária de “falar sem dizer absolutamente nada”, tornando-se em verdadeiros especialistas na arte de contar “histórias de encantar”! Tal como diz o ditado popular… “Prometer não é dar, mas tolos enganar”! Fica a pergunta: afinal quantas promessas têm sido feitas sem que haja a mínima intenção de as cumprir? Ou, simplesmente, quantas delas foram cumpridas nos últimos anos em que ocuparam o lugar único de comandar os destinos de uma nação?

É real e incontestável a inaptidão dos senhores que têm passado pelas cadeiras do poder para a execução do objetivo a que se propõem – a governação de um país em prol dos cidadãos. Daí, talvez, a desconfiança que os cidadãos manifestam em relação à classe política. Desconfiança e descrença que se vai tornando cada vez mais óbvia, com a crescente abstenção na hora de acorrer às urnas de voto, de eleição para eleição, bem como o aparecimento de líderes populistas, que se extremam à esquerda ou à direita no espetro político, alimentado-se de  um discurso incendiário nacionalista ou de total rutura com o sistema.

Muitas vezes nos dizem que a abstenção ou voto nulo não servem para nada. O voto é a ferramenta introduzida nos sistemas democráticos para que os cidadãos expressem a sua vontade e decidam o futuro do país. Não será esta uma verdadeira falácia no sistema democrático que conhecemos nos dias de hoje?

E se não houver candidatos ou partidos políticos que nos satisfaçam inteiramente? Teremos de votar apenas por votar? Será sensato escolher um que nos satisfaça apenas parcialmente?

Na nossa vida profissional e pessoal exigimos o melhor de nós próprios, dos nossos parceiros, colegas de trabalho ou empregados. Porque haveremos de agir de modo diferente quando falamos de políticos? Porque não somos capazes de exigir apenas e só, o melhor para nós e para o país?

Será justo escolher um partido e um líder para o país apenas para cumprir o nosso dever de cidadão? Ao fazê-lo, elegendo pessoas incompetentes para desempenhar aquela função, não seremos nós, também, cúmplices e reféns de uma decisão e não estaremos a alimentar um sistema que cada vez mais deixa os cidadãos descontentes?

Não estaremos nós a ser apenas utilizados como uma ferramenta de legitimação de governos que têm muitos objetivos, mas que não são, definitivamente, de servir o cidadão e o país?

Olhando para a tendência das últimas duas décadas, é fácil perceber que muito brevemente o número da abstenção será maior que o número de votantes. Que lição poderemos tirar disto? Como poderemos inverter esta tendência e dar mais credibilidade a um sistema político que, neste momento, me parece ferido de morte?

O presente artigo não tem como objetivo, de forma alguma, advogar pelo aumento da taxa de abstenção ou dos votos nulos, mas sim refletir e promover uma discussão objetiva e saudável sobre o exercício do poder político, o estado da democracia e, sobretudo, da sociedade em que vivemos. Discussão essa, que, mais cedo ou mais tarde, terá inevitavelmente que acontecer.

Tanto nas eleições realizadas na semana passada em Portugal, como nas que se vão realizar no dia 21 no Canadá, não consigo descortinar um líder, partido ou programa com que, claramente, me identifique.

Venha o diabo e escolha!

 

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