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Soluções simples para problemas complexos

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Um em cada 10 canadianos acredita em pelo menos uma teoria da conspiração (TC) sobre a pandemia de COVID-19. Marie-Ève Carignan é professora associada de jornalismo na Universidade de Sherbrooke, no Quebec, e foi uma das investigadoras que liderou o estudo que comparou o Canadá com outros sete países. Do grupo fizeram parte os EUA, o Reino Unido, a Suíça, Hong Kong, Filipinas, Nova Zelândia e Bélgica. Foram dadas seis hipóteses de escolha às pessoas que participaram no estudo: “o seu governo está a esconder informação importante sobre o coronavírus”; “o coronavírus foi criado intencionalmente num laboratório”; “o coronavírus foi manufaturado num laboratório por engano”; “a indústria farmacêutica está envolvida na propagação do coronavírus”; “já existe medicação para o coronavírus” e “há uma relação entre a tecnologia 5G e o coronavírus”.

Carignan tem dois doutoramentos em comunicação, um pela Universidade de Montreal e outro pelo Instituto de Estudos Políticos da Aix-em-Provence em França. Em entrevista ao Milénio Stadium a investigadora que integra o Comité de comunicação da UNESCO admitiu que a rapidez com que as TC se estão a propagar com esta pandemia é preocupante e pode criar problemas sérios de desconfiança nas autoridades de saúde pública ao ponto que as pessoas se recusem a tomar uma vacina quando ela estiver disponível no mercado.

A investigadora sublinha ainda que a maioria das atuais TC estão relacionadas com a visão da extrema-direita e alerta que para criar o caos basta um indivíduo abraçar a ideologia, decidir adotar um comportamento violento e fazer justiça com as suas próprias mãos. Quando partilha informação nas redes sociais no seu núcleo de contactos certifique-se de que a informação que está a partilhar é baseada em factos e por isso verdadeira. O combate à desinformação deve ser uma missão partilhada por media tradicionais, governo e por cada leitor. E em matéria de TC, desconfie de soluções simples para problemas complexos.

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Marie-Ève Carignan é professora na Universidade de Sherbrooke, no Quebec.

Milénio Stadium: Qual é a definição de teoria da conspiração?

Marie-Eve Carignan (MEC): As teorias da conspiração são baseadas “numa narrativa explicativa que permite aos crentes dar sentido a tudo o que acontece, especialmente a coisas que parecem não intencionais ou não planeadas” (Taguieff). As TC assumem a forma de um sistema organizado de pensamento que professa explicar a realidade e dar sentido a fenómenos sociais ao estabelecer um enredo, geralmente envolvendo as elites do mundo (van Prooijen, Krouwel & Pollet). As TC também podem ser baseadas, pelo menos em parte, em elementos verdadeiros e relativamente comprovados e realidades complexas (Dauphin). O discurso da conspiração não é necessariamente irracional. Não significa que o seu raciocínio seja correto; pelo contrário, muitos investigadores concordam que tal discurso envolve uma certa lógica que se baseia em estereótipos e simplificações da realidade para oferecer uma solução simples para um problema complexo (Taguieff e Taïeb). Nesse contexto, os indivíduos provavelmente vão ver links ou ligações entre eventos aparentemente não relacionados ou eventos sem relacionamento comprovado (Broherton e Enders & Smallpage). Noutras outras palavras, todas as teorias da conspiração, qualquer que ela seja, partilham um sistema de crenças relativamente estável, uma lógica subjacente e certas disposições psicológicas (Imhoff & Bruder). Como resultado, acreditar numa teoria da conspiração pode levar a que se abrace novas conspirações, incluindo aquelas associadas à COVID-19 (Georgiou e Sutton & Douglas). No entanto, isso não significa que as teorias da conspiração não sejam especialmente sensíveis e relacionadas com contextos sociais com estruturas sociais onde se enraízam, especialmente em situações de crise.

MS: Como é que as TC se desenvolvem na sociedade?

MEC: O mesmo tipo de teoria da conspiração vai ocorrer frequentemente numa crise ou num evento próximo de uma crise. Por exemplo, muitas TC relacionadas com a COVID-19 foram previamente divulgadas sobre outras doenças como o HIV ou a Ébola (por exemplo, o envolvimento de empresas farmacêuticas, desconfiança na vacina, etc.). O que mudou no caso da COVID-19 é, sem dúvida, a rápida circulação e adoção de tais teorias. Embora tenha demorado anos para que teorias sobre outras doenças se afirmassem, hoje estamos a assistir a teorias que se espalham em semanas ou mesmo dias no caso da COVID-19. Os confinamentos e o uso intenso da Internet podem ser citados como fatores contribuintes. Essas teorias da conspiração geralmente envolvem a crença de que um grupo está a agir em segredo (por exemplo, instituições governamentais, indústrias, grandes potências económicas, media tradicionais, cientistas, indivíduos ou grupos específicos, como judeus, muçulmanos, asiáticos).

MS: Como é que os autores divulgam as TC?

MEC: A diferença entre quem tem uma crença comum em afirmações conspiratórias e quem partilha e, sobretudo, cria notícias falsas (que não é a mesma coisa) exige alguns esclarecimentos. Ao criar conteúdo, os criadores de notícias falsas estão a cometer um ato intencional e propositado. Os autores sabem que estão a espalhar informações erradas que podem servir interesses políticos, sociais ou financeiros. Ainda assim, muitas vezes as pessoas que partilham estas informações falsas acreditam nelas. No caso das TC, muitas pessoas que partilham estas informações fazem-no sem procurar promover nenhum interesse particular. Geralmente fazem-no de boa fé porque sentem que é uma verdade que deve ser partilhada, não têm nenhuma agenda oculta. É claro que isso contrasta com os instigadores e líderes dessas teorias, alguns dos quais têm interesse em notoriedade ou capital político. A crise da COVID-19, por exemplo, aumentou a visibilidade de indivíduos que de outra forma provavelmente teriam permanecido nas sombras e que às vezes foram motivados por interesses políticos (particularmente ligados à direita ou aos movimentos da Nova Era e anti-vacinas). O que parece mais surpreendente é a velocidade com que os indivíduos estão a adotar essas teorias. Naturalmente, as teorias da conspiração existiam antes da Internet e da COVID-19. Em alguns círculos, as pessoas ainda questionam se a Terra é plana, se alguém andou na Lua ou, de forma menos implausível, se JFK foi realmente assassinado. Mas, devido aos nossos atuais confinamentos, algumas pessoas tiveram mais tempo para visualizar esse tipo de informação nas suas redes sociais e partilhá-la com as pessoas que lhes são próximas. Estas teorias proliferaram rapidamente e em grande escala e atraíram a atenção das pessoas muito rapidamente. As redes sociais são um meio incrivelmente eficaz para divulgar esse tipo de conteúdo.

MS: Porque é que as TC são perigosas?

MEC: As atuais TC parecem estar mais alinhadas com uma visão de extrema direita. A desconfiança das autoridades destaca-se de forma proeminente nos nossos estudos. Quanto mais as pessoas desconfiarem da saúde pública e das autoridades políticas, mais politicamente sensíveis vão ser à retórica da conspiração. A noção de que as pessoas estão a tentar controlá-los ganha espaço, até porque as autoridades de saúde podem, às vezes, voltar atrás nas suas diretrizes, dando a impressão de que algumas informações estão a ser mantidas fora do domínio público. Embora o movimento anti-máscara não seja altamente organizado no momento e às vezes existam diferenças acentuadas de opinião e ideologia dentro das suas fileiras, tudo o que é preciso para criar o caos é um indivíduo abraçar essa ideologia, decidir adotar um comportamento violento e fazer justiça com as suas próprias mãos. Isso é o que mais nos preocupa. Muitas pessoas que cometem atos de violência radical fazem-no sozinhas. Já vimos um aumento muito preocupante do discurso violento entre alguns seguidores desse tipo de teoria. Um exemplo seriam os indivíduos que se inscrevem no movimento QAnon, que o FBI identificou formalmente como uma ameaça de terrorismo doméstico. Além disso, vimos um aumento recente de incidentes violentos relacionados com a COVID-19, como ameaças a políticos, pessoas a serem agredidas porque exigiram o uso de máscaras em locais públicos e indivíduos a atear fogo a antenas de telemóveis porque erroneamente acreditavam que estavam ligadas para a tecnologia 5G. Todos estes fenómenos são uma grande preocupação para os meus colegas e para mim na Cátedra da UNESCO que é responsável pela Prevenção da Radicalização e do Extremismo Violento.

MS: Recentemente conduziu um estudo que concluiu que um em cada 10 canadianos acredita numa TC sobre a COVID-19. O que é que isto nos revela sobre o país?

MEC: No início de junho de 2020 medimos até que ponto os cidadãos em vários países concordaram com cinco declarações de conspiração e pedimos-lhes que classificassem a sua concordância entre 1 e 10, sendo que 1 significava que discordavam totalmente e 10 que concordavam totalmente. Comparámos as pontuações, conseguimos produzir um “índice de conspiração” e mostrar que um em cada cinco canadianos teve uma pontuação média que refletia a concordância com esse índice. Embora este seja um número significativo, deve ser colocado em perspetiva e comparado com os nossos dados de outros países. Filipinas, Inglaterra e EUA apresentam pontuações médias de acordo com o índice duas a três vezes maiores do que o Canadá.  É importante notar que os movimentos de conspiração são muito eficientes em se fazerem ouvir, não só estão presentes em grande número e são muito ativos nas redes sociais, como também são muito barulhentos. Algo que pode ser visto na quantidade de manifestações que realizam, por exemplo, que dão uma impressão ainda mais forte de sua presença, agravada por seu comportamento. No entanto, o facto de que pelo menos um em cada 10 canadianos acredita em TC é preocupante porque pode ter um impacto significativo na saúde pública, sobretudo porque os nossos estudos mostram uma relação significativa entre abraçar TC, rejeitar medidas de saúde e recusar-se a receber uma potencial vacina contra a COVID-19. Agora estamos a fazer uma segunda vaga de estudos, cujos resultados vão ser divulgados no início de dezembro, o que vai permitir perceber como a situação está a evoluir no Canadá e como se compara com outros países.

MS: Como é que os media e os governos podem combater as TC?

MEC: Ainda há muito a ser feito para combater as TC. Os vários ministérios devem trabalhar juntos numa ação concertada. Este não é um assunto para um ministério, mas para todos os ministérios (por exemplo, segurança pública, imigração, educação, cultura). Os governos estão a pressionar os gigantes da Internet para estabelecer limites mais eficazes sobre o que está a circular nas suas plataformas. As medidas anti desinformação que foram adotadas por essas grandes empresas até agora estão aquém do ideal e, como sabemos, o seu principal interesse não é controlar as mensagens, apesar das muitas medidas adotadas recentemente. Esta é uma questão importante que terá de ser considerada antes de outra pandemia. É preciso continuar a apostar na educação para que, caso não se possa impedir a circulação de notícias falsas, as pessoas sejam, pelo menos, informadas sobre as formas de julgar a veracidade do que veem na internet. Temos de dar mais ênfase à alfabetização digital, à educação dos media e jornalismo, educação científica e pensamento crítico. A capacidade de debate também deve ser reforçada. Além disso, os media de notícias devem ter autonomia para fazer o seu trabalho e contrabalançar a desinformação. Em suma, são possíveis uma variedade de soluções, mas são necessários planos concertados entre as diferentes autoridades de decisão.

Joana Leal/MS

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