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Sem rosa, sem nada

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Sem medo, Amália Rodrigues cantava “O medo mora comigo”, como se se tratasse de um animal de estimação. Na minha inocência, interrogava-me como se podia cantar o medo daquela maneira e, logo depois, acrescentar “É com silêncio que fala”, tornando-o mudo, como um segredo bem guardado dentro de si. 

Não me lembro de alguma vez ter cultivado medos no horto da minha imaginação: da casa calada quando todos dormiam; das sombras que ganhavam formas assustadoras no escuro da noite; das trovoadas a ribombar ao som do choque das nuvens (como nos diziam); dos raios que cruzavam os céus em instantâneos clarões de luz; das chuvadas tropicais que, de tão fortes, se transformavam em enxurradas da ira de S. Pedro, zangado com os pecados dos homens (aprendia-se na catequese); dos cemitérios, onde cedo aprendi a lidar com a morte, quando esta não era ainda escondida das crianças.

Fui crescendo sem medos, porque, de tão depressa me ter feito adulta, não me sobrou tempo para os ter. Apesar disso, a vida foi-me generosa: sou filha, mãe e avó da paz, nascida dos destroços da II Guerra Mundial. Por isso, também nunca tive medo da morte, essa, sim, a morar comigo desde que nasci. Aguardo-a tranquilamente, na certeza da sua cada vez maior proximidade, por cada novo dia que passa. Dela não saberei hora nem dia, porque ficarão averbados numa certidão de óbito destinada a terceiros.

“Aquele que morreu não o saberá nunca.” – Manuel António Pina

Ana Luísa Amaral, a grande poeta que recentemente nos deixou, no poema “Testamento”, confessou que tinha medo das alturas. Por ironia do destino, o “assento etéreo” que agora ocupa não foi o de nenhum avião, mas atribuído por um passageiro que, clandestinamente instalado no seu corpo, lhe trocou o lugar do voo. Se estivesse ainda connosco, esta eterna viajante das palavras, encheria os seus poemas de muitos outros medos, intrusos das nossas vidas, sem que nenhum de nós dê por isso. Pelo contrário, é a alegria que anda no ar. Após dois anos a gerir os medos da pandemia, vivemos a fase anestésica da celebração do “vai ficar tudo bem”. Sedentos de encontros e reencontros, queremos recuperar o tempo perdido, neste verão que nos tem brindado com temperaturas convidativas para a diversão e o convívio. Esplanadas cheias, muita gente a circular à noite na rua, festivais de música apinhados de gente de todas as faixas etárias a vingarem-se do tempo em que foram obrigados a viver o medo dos contágios.

Por entre pulos a acompanhar a batida musical, palmas e danças que variam segundo a toada que o ritmo impõe, um novo vírus se começou a instalar, aproveitando este nosso tempo de distração e euforia. Esquecemo-nos que esta semana, em especial, estamos a lembrar os 77 anos após Hiroshima e Nagasaki, hoje destinadas a inscrever topónimos noutros lugares, com o mesmo grau de destruição.

Eu não era ainda nascida quando caiu a primeira bomba atómica, mas nunca me cansei de ver as nuvens de cogumelos que as explosões provocaram. Nunca deixei de ler, ver e ouvir sobreviventes sobre o horror que puderam testemunhar. 

Ney Matogrosso, fez aquilo que só os poetas podem fazer: transformar os cogumelos em rosas, como a Rainha Santa das rosas fez pão. E compôs a Rosa de Hiroshima, cujos apelos deveriam ser ouvidos por aqueles que têm o poder de carregar no botão que tudo destruirá, deixando-nos sem céu para sermos átomos livres. 

 “Pensem nas crianças, mudas, telepáticas/ pensem nas meninas, cegas, inexatas/ Pensem nas mulheres, rotas alteradas/ Pensem nas feridas, como rosas cálidas. Mas, oh, não se esqueçam da rosa/ da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária/ A rosa radioativa, estúpida e inválida (…).”

Agora, sim, tenho medo, muito medo! Do nuclear que poderá transformar o nosso mundo num lugar “Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.”

Aida Batista/MS

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