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Quietos, calados, mascarados e fechados

Quietos, calados, mascarados e fechados-mundo-mileniostadium
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É verdade que se convencionou dizer que a infância das crianças é, “regra geral”, livre e despreocupada. Mas…

A infância das crianças nunca foi tão “cor de rosa” assim. Até porque – ao contrário daquilo que muitos afirmam hoje, a propósito das regras a que estão sujeitas na escola, por exemplo – elas não se adaptam a tudo. Nunca estão tão distraídas como se vaticina por aí. E são, todas elas, tão sensíveis e tão inteligentes, que não há como passarem “ao lado” de todas as coisas a que são expostas. Que fazem da infância, ao longo dos anos, um lugar com muitas sombras. Que nos leva, à maioria de nós, a tentar consertar, pela vida fora, as “cicatrizes” de uma infância que todos queríamos que tivesse sido mais feliz.

É verdade que se convencionou dizer que a infância das crianças é, “regra geral”, livre e despreocupada. E que parece que, quando a vivemos, a nossa infância se espreguiçava pelo tempo, sem sobressaltos nem dor. Mas raramente a infância duma pessoa se passa assim. A infância é, muitas vezes, muito triste. Tem muitos mais momentos de desamparo do que devia ter.

Brincaram connosco e contaram-nos histórias menos do que devia ter acontecido. E sentimo-nos, vezes demais, assustados, atormentados, demasiado pequenos e sozinhos. Aliás, não fosse a nossa infância aquilo que foi e nenhum de nós se teria sentido tão condicionado, em tantos momentos, por tudo aquilo que, por causa dela, acabámos por acumular. Que fez com que os nossos desempenhos, os nossos amores, a forma como nos damos socialmente, as nossas escolhas ou os trilhos que acabámos por percorrer se tivessem enviesado como, muitas vezes, acabou por acontecer com todos nós.

A relação da escola com a infância também não foi, ao longo do tempo, tão cheia de experiências boas como todos teremos desejado. É verdade que o ensino obrigatório resgatou milhões de crianças para a infância a que, doutra forma, não teriam direito. Mas a escola como uma experiência de “recreio” ou de pessoas bondosas que nos levavam pela mão conhecimento a dentro não foi bem assim. A nossa escola nunca foi tão livre, tão entusiasmante e tão justa como todos gostaríamos que tivesse sido. Nem teve tantos professores “especiais” como gostaríamos muito que nos tivesse dado. E estigmatizou muitos amigos nossos como se fossem “pouco inteligentes”, sem que os tivesse resgatado para o conhecimento com teria a obrigação de o ter feito.

Por isso mesmo, quando – hoje – os nossos filhos têm de estar na escola quietos, calados, mascarados e fechados reagimos com algum mal-estar, mas com complacência demais. Como se os perigos de que os queremos proteger se sobrepusessem aos custos de um tão inusitado confinamento. E, por isso mesmo, como se aquilo que a escola exige às crianças não justificasse qualquer contraditório da nossa parte. O que não é verdade.

As crianças não ganham se tiverem aulas durante muito tempo. Não aprendem mais. Nem aprendem melhor. O enfado ou o cansaço descentra-as daquilo que lhes é pedido. Desconcentra-as. Distrai-as. Inquieta-as. Logo, quanto mais as aulas se prolongam menos elas aprendem.

As crianças não ganham se não tiverem recreios. Tê-las quietas, caladas e fechadas obriga-nos a dar-lhes recreios mais generosos. Muito acima dos 5 minutos que muitas escolas, a pretexto do coronavírus, entenderam atribuir-lhes. E acima dos 10 minutos de recreio do “antigamente”, que lhes dava 3 minutos para irem à casa de banho, 3 minutos para comerem o pão e 4 minutos para brincarem. Escolas que desconsideram o recreio comprometem o aprender.

As crianças não ganham se não se “misturarem” umas com as outras. Se não se socializarem. Se não conviverem com outras crianças de outros grupos e, até, de outras idades, em espaço aberto, sem constrangimentos e sem isolamento. É verdade que um segundo de conversa entre duas elas gera dez microgotículas que podem transportar coronavírus. E que, daí por diante, o risco será sempre a multiplicar. Mas escola e isolamento social não casam tão bem como, por vezes, pode parecer. E se o isolamento social parece “favorecer” as crianças “tímidas”, por exemplo, a prazo, tanto isolamento faz mal ao desenvolvimento de todas as crianças.

As crianças não ganham se – como alternativa ao brincar, às correrias ou ao falar “pelos cotovelos” – a escola “fechar os olhos” à utilização de telemóveis nos intervalos das aulas. Mesmo que eles decorram na própria sala de aulas. Incentivar a que se virem sobre si ou favorecer que joguem em rede, na sala de aula, não é uma compensação sensata que desvalorize os custos de não terem recreios. Logo, a escola terá de ponderar outras alternativas para os tempos livres de que as crianças necessitam para que, em contrapartida, elas aprendam melhor.

As crianças não ganham se o tempo em que estão na escola se estique, em função da gestão desencontrada de tempos de entrada na escola, dos tempos livres desencontrados e etc. A ideia que a escola favorece as bolhas e que as bolhas protegem o desenvolvimento das crianças não é razoável nem prudente. Sobretudo se ponderarmos em todos os aspectos que o estimulam. E não pensarmos só no coronavírus.

As crianças não ganham se, num contexto tão adverso como aquele em que estão a viver, a escola lhes atribuir muitos trabalhos de casa como forma de as “compensar” dos sobressaltos de um dia a dia escolar muito difícil para todos. Trabalhos de casa “em cima de actividades extra-curriculares que, por sua vez, surgem em cima de ateliers de tempos livres (que, finalmente, surgem “em cima” das aulas) não ajudam nada a criar uma atmosfera “respirável” diante de todos os obstáculos à liberdade de aprender com que as crianças se deparam, todos os dias.

As crianças não ganham se a comunicação entre elas e as pessoas crescidas tiver sempre uma máscara a separá-las. Concordando que ela possa ser indispensável em contexto de escola, aquilo que se diz com a voz e com os olhos não é acompanhado pela linguagem de todos os músculos do rosto. Logo, a linguagem das máscaras tem demasiadas interferências e sussurros em demasia. E traz muitos mais mal-entendidos. Logo, obriga-nos a ser (ainda) muito mais claros em relação aquilo que dizemos e ao modo como o fazemos. Para que a escola não crie os desencontros que as prejudiquem.

As crianças não ganham se, depois de tanta escola em condições tão pouco amigáveis, tenham todas as actividades extracurriculares que, dantes, tinham. Tanta contenção durante tanto tempo faz com que elas fiquem mais “eléctricas”. Mais “impossíveis”. E mais indisciplinadas, até.

Na sala de aula. Como ao chegarem a casa. E, sobretudo, se as “dificuldades de concentração” ou os “défices de atenção” que tantos lhes atribuem – como se nada disso tivesse a ver com o tempo em que as “temos” fechadas, a forma como as empanturramos de conhecimentos e lhes “cortamos” tempos sobre tempos para brincarem – continuarem a ser vividas como uma espécie de epidemia atípica de crianças do que, propriamente, uma consequência da insensatez com que as temos vindo a privar da sua infância.

Em resumo, a infância das crianças nunca foi tão “cor de rosa” como, tantas vezes, desejámos que fosse. Nem a escola foi sempre tão amiga do desenvolvimento delas todas, ao longo dos tempos, como teria sido a sua obrigação.

É verdade que, hoje, lhes damos mais atenção e nos preocupamos, como nunca com a sua educação. Por mais que elas cresçam mais protegidas, crescem, também, mais fechadas, menos autónomas e menos livres.  E crescem sempre a desafiar o perigo de deixarmos que “a linha” que separa a escola enquanto direito fundamental da escola enquanto trabalho infantil do século XXI se dilua e se confunda. Fazendo com que a escola se transforme no maior dos obstáculos da infância. O que não seria nem sábio nem justo.

Mas ter as crianças – nos próximos 9 meses! – quietas, caladas, mascaradas e fechadas, sem nos preocuparmos todos com aquilo que é fundamental para que não se estrague a infância e não se comprometa o seu desenvolvimento não é razoável. Temos, (pais e professores) todos juntos, de encontrar formas de as compensar de todos os exageros a que as estamos a expor.

De forma a recuperarmos a infância a que têm direito. Nem que, para tanto, aproveitemos as condições mais difíceis com que todos já vivemos a escola, e todos estes sobressaltos, para podermos reinventar a escola. E, então sim, criarmos as condições para que sejam mais felizes.

Deixem-nos respirar!

A infância não merece parques infantis com fitinhas vermelhas.

– Mãe, nos velhos tempos, quando íamos ao parque…” foi, num destes dias, um desabafo de um dos meus filhos, mais pequeninos. E se a mim já me preocupa que, para uma criança, o “ontem” tenha dado lugar aos “velhos tempos”, que ele escutou em alguém, já me sobressalta que ir a um parque se perca numa espécie de passado tão remoto que se assemelhe ao antepassado do “ontem”. Aos “velhos tempos”!

No meu ontem, a mim, já me alarmava a forma como nós – ao mesmo tempo que afirmávamos (e repetíamos) que o melhor do mundo são as crianças – permitíamos que elas tivessem, cada vez, menos direito à infância. Sobretudo quando escutava imensos pais a afirmar que a sua infância terá sido, nos seus velhos tempos, mais amiga da rua, mais livre e mais feliz. Por isso mesmo, no nosso hoje, pergunto-vos o que andamos nós a fazer das crianças, a pretexto de as protegermos?

Se já não bastava que quase fujam quando um adulto se cruza com elas e lhes sorri (!!); se não fosse já estranho (e esquisito) que haja escolas a pedirem para que as crianças levem telemóveis para as aulas de forma a que não corram e não brinquem; e se não fosse já obsceno que muitas crianças, na escola, almocem no recreio, ao ar livre, usando o chão e, por vezes, de guarda-chuva aberto (!!); privá-las, em nome da saúde, dos parques infantis é grave! E é grave, para mais, quando não se vê nem quem dirige a saúde nem quem preside às autarquias a encontrarem formas de as crianças terem direito aos seus parques infantis. Para que tenham direito a correr. A brincar. A pendurarem-se num baloiço. E a terem uma aragem, quase inconveniente (nos tempos que correm), de liberdade.

Não, a infância dos nossos filhos não deixou, hoje, de ser urgente e inadiável! Exige o ar livre. Exige o exercício físico. Exige a relação com o espaço público. E exige o brincar!

Por isso mesmo, a infância não merece parques infantis com fitinhas vermelhas. Nem entidades públicas a desaconselhar as crianças de usarem a infância; muito menos, em público. Nem esta indiferença das autarquias em relação a práticas que permitam vigiar e higienizar os parques infantis. Como se todos convivêssemos – sem direito à indignação – com esta recomendação subtil que, para além de aconselhar distanciamento aos nossos filhos, lhes parece dizer e repetir: “Crianças: pela vossa saúde, não usem a infância!”.

Por favor: deixem-nas respirar!

• Eduardo Sá


Eduardo Sá -portugal-mileniostadium
Eduardo Sá é Professor da Universidade de Coimbra e do ISPA, Instituto Superior de Psicologia Aplicada de Lisboa.

Eduardo Sá é reconhecido em Portugal por ajudar muitos pais e educadores a olharem para as crianças com outros olhos. Muitas vezes a sua perspetiva é a das crianças que, como psicólogo clínico e psicanalista, aprendeu a conhecer e respeitar. Nem sempre é consensual, mas sempre agita as cabeças demasiado formatadas.  Com os seus textos publicados no jornal Observador, nos seus vários livros já publicados, ou com as suas crónicas diárias na Rádio Observador, obriga-nos a parar para refletir sobre ações que antes não questionávamos, sobre modelos que precisam de ser renovados, sobre conceitos que nem sabíamos que estavam incorretos.

Professor da Universidade de Coimbra e do ISPA, Instituto Superior de Psicologia Aplicada de Lisboa. Diretor do BabyLab-Laboratório de Psicologia do Bebé da Universidade de Coimbra. Membro da Unidade de Investigação em Família, Saúde e Justiça, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra/Unidade de Investigação e Desenvolvimento e Diretor Clínico da Bebés & Crescidos, Clínica de psicologia e saúde familiar, Eduardo Sá é também um homem de uma simplicidade e simpatia extraordinárias.

Aceitou gentilmente que o Milénio Stadium publicasse dois dos seus mais recentes textos/reflexões sobre os efeitos da pandemia nas crianças. Para ler e refletir. E até quem sabe repensarmos a forma como estamos todos a lidar com um tema de tamanha importância. Afinal, nestes dias loucos, Fernando Pessoa continua a ter toda a razão – “o melhor do mundo são as crianças”. Saibamos respeitá-las.

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