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Quase 10.000 pessoas vivem nas ruas de Toronto

O choque passou a dar lugar a uma certa indiferença – olhamos, não gostamos do que vemos, mas desviamos rapidamente o olhar, porque incomoda. Não é agradável olhar para a cidade e vermos pessoas a arrastarem-se, sem rumo, nem futuro, com os poucos pertences guardados num saco sujo e gasto. Há uns tempos, no entanto, é impossível não ver – a realidade entra pelos olhos dentro e vinca-nos a alma. Há cada vez mais tendas a servir de habitação a quem nada tem. Enchem parques que outrora foram de alegria e lazer e quebram a paisagem, agredindo a dignidade humana a que todos, sem exceção, deveriam ter direito – ninguém merece não ter onde viver. Algo que nos pensar no que poderá estar a causar esta triste invasão da propriedade que não é de ninguém, mas é de todos – os espaços públicos da cidade.

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Créditos: Unsplash

Os abrigos que, ao longo dos anos, têm servido para apoiar quem por falta de cabeça ou por infortúnio, caiu na desgraça e pobreza extrema e não só não tem meios de subsistência como não tem casa para se recolher, são hoje manifestamente insuficientes para acolher as “quase 10.000 pessoas sem-abrigo” que vivem em Toronto, segundo a estimativa do Abrigo Fred Victor. Keith Hambly, CEO deste espaço que há mais de 25 anos se dedica a apoiar e acolher pessoas que a vida levou para a rua, sublinha que “este número praticamente dobrou nos últimos anos. Não representa apenas as pessoas que vemos nas ruas da cidade ou em acampamentos – estamos a falar de todas as pessoas que se encontram identificadas no sistema de abrigos e pessoas que vivenciam o chamado “hidden homelessness” (ou seja, aqueles que fazem couch-surfing, aqueles que dormem no carro, etc.)”. Já Steve Doherty –  Executive Director YWS, defende que este fenómeno de crescimento exponencial de pessoas a viver na rua se justifica por um conjunto de fatores “nenhum fator isolado é o culpado. Uma diferença significativa é que a cidade está mais tolerante desde o início da COVID-19. O número de pessoas acampadas tem variado e os locais mudam com frequência (a cidade desmonta um local e outro aparece)”.

Steve Doherty introduz assim um tema que Keith Hambly também considera estar a ter um impacto terrível num velho problema da sociedade – “a pandemia, sem dúvida, terá repercussões sociais, levando mais pessoas à pobreza e à privação de uma moradia. No entanto, mesmo antes da COVID-19, estávamos no meio de uma crise de falta de habitação. O que a pandemia efetivamente fez foi destacar como a vida é precária para as pessoas que vivem na pobreza”. Doherty completa esta ideia afirmando que “o impacto financeiro criado pelos confinamentos devido à COVID-19 tocou significativamente aqueles que dependem do trabalho nos setores mais afetados. Muitas dessas empresas exigem trabalhadores com qualificação relativamente baixa e essas pessoas também correm o maior risco de demissões quando estão entre as mais mal pagas. Não está claro até que ponto é que isso afetou os acampamentos, já que muitos dos que vivem ao ar livre foram identificados como “sem-abrigo crónico” na mais recente Avaliação de Necessidades de Rua realizada pela cidade. A maioria relatou estar desempregada, mas o impacto não pode ser ignorado.” E também a pandemia, e as apertadas regras sanitárias que exigiu, são responsáveis em grande medida pelo que está agora tão evidente na cidade de Toronto como explica Hambly – “com a COVID-19 tivemos que reduzir a capacidade dos nossos abrigos em 50%. Como resposta, a cidade de Toronto abriu novos abrigos para aumentar o distanciamento físico dentro do sistema.” E Steve Doherty ainda acrescenta que “a cidade tem feito o possível para aumentar o número total de leitos disponíveis, contratando hotéis para compensar a diferença”.

Mas há um outro fator que não podemos esquecer ou ocultar como muito bem lembram os nossos entrevistados – pessoas com elevado conhecimento da realidade deste enorme problema social: “A Fred Victor tem dois abrigos de emergência que funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana. Ambos oferecem camas, a curto prazo, para pessoas necessitadas quando todas as outras opções de moradia falham.

Esses abrigos são mais do que apenas um lugar para dormir – oferecem necessidades primárias como alimentos, lavandaria e suprimentos de higiene para todos. Eles também fornecem apoio relacionado com cuidados de saúde, informações e encaminhamento, acesso à habitação e advocacia. Dito isto, não podemos forçar ninguém a ficar no nosso abrigo.” afirma Steve Doherty. E Keith Hambly reforça essa ideia dizendo “não podemos forçar as pessoas a irem para um abrigo ou centro de descanso. O sistema de abrigos e a cidade só podem oferecer um aumento de serviços, tanto quanto possível – algo que têm vindo a fazer desde o início do confinamento devido à COVID-19”. E quando perguntamos qual a solução para esta situação que está a afetar a sociedade canadiana e os torontonianos em particular, a resposta surge sem hesitação “com uma habitação mais acessível e de apoio. O trabalho que fazemos na Fred Victor é baseado numa abordagem de Habitação em Primeiro Lugar. Este princípio orientador baseia-se na filosofia e na pesquisa de que um caminho bem-sucedido para sair da condição de sem-abrigo começa com uma moradia estável. Pessoas que vivem numa situação dessas precisam de moradia permanente e acessível como ponto de partida, para então ter acesso aos apoios e serviços necessários para manter essa habitação.” defende Keith Hambly. Uma ideia complementada por Steve Doherty quando afirma que “investigações dizem-nos que a melhor maneira de diminuir a falta de habitação passa por uma economia forte e robusta, que possa fornecer empregos estáveis e bem remunerados. Quando isso é combinado com um aumento na oferta de aluguer, o número de desabrigados cai significativamente. Recentemente, os governos municipais e provinciais têm feito investimentos recordes no apoio à saúde mental, um exemplo do tipo de apoio necessário para garantir o bem-estar de todos.” Hambly recorda ainda que “iniciativas como a Estratégia Nacional de Habitação visam aumentar a oferta de moradias acessíveis na nossa cidade. No entanto, o impacto dessas iniciativas não será atualizado durante anos. Nesse interregno, temos que fazer mais para aliviar o sofrimento humano associado à falta de habitação. Para as quase 10.000 pessoas que vivem atualmente sem casa em Toronto, o impacto negativo na sua saúde mental e física é bastante claro.”. Como remate final ficam as palavras de Doherty – “infelizmente, não existe uma solução mágica e única.” e de Hambly quando afirma que “a falta de moradia é um problema complexo que exige uma resposta de governos, provedores de serviços, destinatários de serviços e da comunidade em geral.” Sim! Todos podemos contribuir para a solução de algum modo. Nem que seja passarmos a ver e não apenas olhar e muito menos fingir de que não se passa nada.

Catarina Balça/MS

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