Temas de Capa

“Podemos dizer que há, infelizmente, uma tradição, relativamente longa, dessa promiscuidade” – Paula do Espírito Santo

 

O dinheiro, a corrupção, mais ou menos descarada e o exercício de funções políticas andam, não raras vezes de mãos dadas. Talvez por isso se note uma, cada vez mais aprofundada, descredibilização dessa tarefa, que devia ser nobre, de servir a Pátria, implementando ideias e ideais, de modo a conseguir uma maior justiça social e económica para todos os cidadãos. Essa compra e venda de interesses e favores talvez tenha sempre acompanhado a vida política ao longo dos séculos, talvez agora o escrutínio, muito acelerado pelas redes sociais (para o mal e para o bem) ponha velhas realidades a descoberto, mostrando, de forma mais clara, os meandros de um mundo subterrâneo ou pelo menos pouco nítido, cheio de cruzamentos de interesses e favores. Paula do Espírito Santo, Professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política (ISCSP), da Universidade de Lisboa, ajuda-nos a entender o que tem acontecido nos quadros políticos de diversos Estados de Direito, em diversas geografias, quando nos aproximamos de eleições.

Milénio Stadium: Na campanha eleitoral dos Estados Unidos da América nós temos vindo a assistir à prevalência do dinheiro no discurso político, seja em forma de propostas eleitorais, nomeadamente, muito por parte de Kamala Harris, seja como argumento contra um dos candidatos, a própria Harris, a quem é atribuído, por exemplo, o aumento do custo de vida dos últimos anos. Partindo deste exemplo dos Estados Unidos… o dinheiro é um fator determinante na escolha dos eleitores no momento da decisão de voto?
Paula do Espírito Santo: Eu diria que num plano de atratividade da mensagem, claro que sim, que chama a atenção pela via mais imediatista e por ser também um veículo que não é corrente, no sentido de se constituir aqui quase como uma moeda de troca ou como uma compra política, do ponto de vista da adesão eleitoral. Contudo, também devemos pensar que os eleitores são uma camada muito heterogénea do ponto de vista da sua competência política. E quando falamos de competência, de política, falamos da informação que se tem. E também falamos do conhecimento que se tem, que são aspetos diferentes. E podemos dizer que há eleitores que são mais interessados na política e que tentam estar identificados com o curso da própria história, do presente e daquilo que vai acontecendo num plano, por exemplo, conjuntural, de conjuntura económica e social. E são informados. E também temos os eleitores que, normalmente, paralelamente à informação, também são mais competentes do ponto de vista do perfil dos conhecimentos. Agora, em relação, vamos dizer assim, a este consumo rápido, esta espécie de gratificação instantânea, como se diria na área da psicologia, que está a ser promovida por Elon Musk, com o sorteio diário de 1 milhão de dólares, por exemplo, é ótimo ter esta recompensa instantânea e esta associação de ideias que, no fundo, também acaba por vir da área da psicologia, em que a política pode ser um bem, que é positivo, que é satisfatório, que recompensa num plano imediato, não apenas num sentido de escolher ou tomar uma opção pelas políticas públicas certas a partir do partido ou dos candidatos que melhor representam um conjunto de ideais. E esta satisfação seria uma satisfação a médio prazo ou a curto prazo, dependendo também do ângulo e do alcance das políticas.
Mas creio que se formos às raízes, as raízes têm precisamente a ver com a maneira, antes de mais, como entendemos a política enquanto produto, por assim dizer, enquanto oferta eleitoral. É a forma como também entendemos a própria vida, no sentido de gerar ou não recompensas e associar as recompensas a várias áreas. E aqui será em relação àqueles que podem facilitar o acesso a essas recompensas, neste caso monetárias, que podem ser importantes para uma parte do eleitorado que as considera muito mais relevantes no sentido de uma satisfação rápida de necessidades do que, por exemplo, a própria defesa de ideais e de doutrinas e de ideologias. Aqui não se trata de resolver problemas, trata-se de desencadear a tensão, suscitar o interesse, criar o desejo e depois levar a aquisição. E, no fundo, é esse plano mais imediatista de consumo de um produto político.

MS: Falou já do Elon Musk, em relação a esta intervenção na campanha eleitoral dos EUA, defendendo as cores de Trump, e que está a sortear 1 milhão de dólares, todos os dias para quem estiver em condições de votar nos chamados estados swing. Perante esta situação e ao ponto a que chegámos, onde é que vai parar o voto livre e democrático se começarmos a entrar por estes caminhos?
PEdS: Felizmente ou infelizmente, estamos a falar também de alguém que é, talvez, exemplo num plano da área dos negócios, por ser bem-sucedido, por ter feito a vida a pulso e nesse plano poderá ser exemplo para alguns. Claro que é também um mau exemplo para todos aqueles que não se identificam com a sua política de empregabilidade, a sua política mais de agressividade no plano dos próprios negócios e com todas as questões que têm vindo a público. A vida dele não tem sido também uma vida propriamente escorreita e exemplar no plano da ética e num plano também da própria relação com os empregados, os despedimentos, colocando, no fundo, o negócio à frente de tudo, independentemente das pessoas.
Também não é de estranhar na pessoa em si (Elon Musk) que privilegia, antes de mais os negócios, que esteja a fazer este sorteio que, independentemente dos méritos que possamos ter, nos possibilita a aceder ao tal prémio. Por sorte, simplesmente por sorte, não importa absolutamente mais nada. E, claro, aliando um compromisso, que não tem de ser verdadeiro, é um compromisso em que a pessoa faz um negócio para, em troca, se habilitar a um prémio.

MS: Toda essa linguagem que está a usar leva nos exatamente a esta ideia da política estar cada vez mais comprável, transformável num negócio, em que há uma compra e venda de interesses ou de votos, ou seja lá o que for. Concorda que há uma progressiva promiscuidade entre a política e o dinheiro? Acha que isto é realmente assim? Ou seja, a palavra promíscua pode ser utilizada nesta relação?
PEdS: Podemos dizer que há, infelizmente, uma tradição, relativamente longa, dessa promiscuidade. No caso português, a legislação acerca do financiamento partidário tem vindo a ser afinada, apurada, precisamente para evitar ou para minimizar, porque não se evita nunca, essa promiscuidade entre os negócios, o poder económico e a política. Em Portugal o financiamento tem que ser transparente, tem que ser público. E há limites do ponto de vista dos apoios financeiros, que uma empresa ou que mesmo um particular, possa dar a um partido. No caso dos Estados Unidos, tanto estamos a falar ao nível de um cidadão comum que pode despender alguns dólares, como falamos de grandes grupos empresariais, claro que há uma troca, às claras, de favores em que um grupo aposta naquele político, mas depois também certamente vai querer dividendos. Vai querer ou vai esperar que haja depois um benefício relativamente a estes negócios. O que se pede, antes de mais, e não tem a ver com convicções, tem a ver com uma troca de favores que, depois, a superfície não é na ponta do iceberg. Acaba por, quase de uma maneira descarada e sem ética, trazer atrás de si aqueles eleitores que, no fundo, acabam por não dar valor verdadeiramente à política e aos ideais políticos, mas que entendem que podem ser comprados a qualquer momento, se considerarem um conjunto de propostas, mesmo que não se identifiquem com as mesmas, mas habilitando-se a ganhar 1 milhão de dólares, perfilando determinadas opções. Agora, eu creio que o dinheiro está sempre presente na política, está presente tanto quanto a própria legislação. Obriga também a que haja um formato que permita, tanto quanto possível, a transparência do financiamento dos partidos e dos candidatos. Nos Estados Unidos há um maior liberalismo, há um outro entendimento desse financiamento. Mas o dinheiro faz parte, direta ou indiretamente, das campanhas eleitorais que são financiadas e as campanhas são financiadas de acordo também com as regras de cada Estado de Direito Democrático. Há Estados mais restritivos no plano da transparência dos fundos que apoiam as campanhas, para além das próprias subvenções públicas, como é o caso português e a outros estados em que esse apoio pode ser bastante realizado. No fundo, eu até entendo isso quase como uma condicionante da nossa liberdade em que se paga ou em que se compra a liberdade de escolha do voto, oferecendo um bem que pode ser maior para muitos eleitores, que é o bem do dinheiro, que pode ser, como é no caso de Musk, de valores astronómicos e que pode sobrepor-se ao interesse pelo próprio voto enquanto instrumento de decisão individual, livre, responsável. No fundo, é descaracterizar o voto naquilo que ele tem de mais nobre, que é a liberdade de escolha e o ser descomprometido do ponto de vista de atuação sem se estar sujeito a uma coação no sentido da obrigatoriedade ou do controlar o sentido de voto, mas é uma coação persuasiva em que se coloca à frente dos ideais da política na sua vertente mais genuína e mais livre do termo, num Estado de Direito democrático, um outro valor, que é o valor do dinheiro. É uma subversão de valores. No fundo, mesmo sabendo nós que os dinheiros e o financiamento estão presentes, vemos agora, diretamente, o dinheiro a “atacar” a base do Estado de Direito que são os eleitores e que são quem tem o poder de decidir. É interessante porque aqui não se está a financiar a campanha e o candidato, está-se a financiar o próprio eleitor.

MS: Em Portugal, no Governo de António Costa, em determinada ocasião, com o objetivo de mitigar o impacto da inflação o Estado deu um “cheque” de 125 euros a quem tinha rendimentos até 2.700 euros mensais. Aqui no Ontário agora vão fazer uma coisa semelhante, com 200$ para cada ontariano com o argumento de que houve um excedente no orçamento e, portanto, vão devolver dinheiro à população. Acontece que para o ano há eleições provinciais…
PEdS: A gratificação também faz parte da política. Quando há aumentos das pensões em vésperas de eleições, por exemplo, acaba por haver também aqui uma leitura, não digo que seja oportunista, mas que acaba por aproveitar também circunstâncias de urgência ou de emergência dos atos eleitorais que se avizinham. E nós, no fundo, do ponto de vista comportamental, nós funcionamos muito pelo estímulo e pela recompensa, vamos dizer assim. Claro que se calhar há pessoas que são mais inabaláveis nas suas convicções, mas há outras que poderão compreender, sobretudo em momentos de dificuldade, que essa gratificação até vem a calhar bem e que, no fundo, acabam por ter alguma recompensa mais do que os outros governos anteriores davam. Eu diria assim, desde que o erário público, não fique em risco… é claro que as recompensas procuram sempre também a criação de uma resposta de acordo com aquilo que são os objetivos. Mas eu vejo isto também um bocadinho numa perspetiva mais de Psicologia e Psicologia Social. onde se procura estimular uma determinada ação através também dessa visão daquilo que nós podemos valorizar. Na perspetiva do cidadão é mais interessante ser o dinheiro. Mas poderia ser outra valorização, a criação de emprego, por exemplo, seria se calhar muito mais aceite no curto prazo ou no médio prazo do que a oferta de dinheiro em termos imediatos, que se gasta rapidamente também, se forem valores pequenos.
MB/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER