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Pintar a cara de negro pode ser ofensivo? A História explica.

Escurecer a cara para encarnar alguém de raça negra pode ofender, dependendo de como é feito e dos olhos que veem. Até há 60 anos, servia para ridicularizar. Hoje, há quem o faça só para caracterizar, mas a História não muda o tom.

A um mês das eleições legislativas no Canadá, o primeiro-ministro candidato à reeleição, Justin Trudeau, viu-se a braços com uma situação – polémica para uns, para outros não – que abre uma ferida nunca sarada: a imprensa divulgou imagens antigas do líder partidário com a pele artificialmente escurecida.

A primeira fotografia, revelada pela revista “Time”, foi tirada durante uma festa inspirada no tema “Mil e uma noites”, em 2001, e pertence a um álbum de final de ano de uma escola onde o canadiano lecionava. Nela, um Trudeau de 29 anos, sorridente e na companhia de quatro mulheres, mascarado de Aladino, personagem de contos árabes, usa turbante e tem a pele pintada de castanho. Não tardou até outras imagens se seguirem: uma de um espetáculo de talentos em que Trudeau imita um cantor de ascendência jamaicana – e que o próprio antecipou – e um vídeo “do início dos anos 90” em que surge com t-shirt e calças de ganga rasgadas, mãos no ar e cara negra a fazer caretas.

Tramado pela oposição conservadora – que admitiu ter enviado uma fotografia à imprensa em pleno arranque da campanha eleitoral -, Trudeau não hesitou em pedir desculpas e dizer-se arrependido (fê-lo repetidamente): “Escurecer o rosto, independentemente do contexto ou das circunstâncias, é sempre inaceitável por causa da História racista do ‘blackface’ [pintar a cara de negro]. Não devia tê-lo feito. Devia ter tido noção e não tive. Lamento profundamente”. Num discurso ao país, assumiu a responsabilidade da “idiotice”, disse-se “desiludido” e “chateado”, e admitiu a “cegueira” imposta pelos “privilégios” que teve. “É bem sabido que para pessoas e comunidades que enfrentam discriminação do tipo que eu nunca tive de experienciar, estas coisas são significativas e muito prejudiciais, e é por isso que estou tão dececionado comigo”.

Todos lamentam erro, mas aliados reforçam medidas inclusivas

As imagens dispararam críticas, sobretudo de opositores e historiadores. O líder conservador Andrew Scheer, adversário n.º 1 de Trudeau, descreveu “alguém sem sentido de discernimento e integridade, que não está apto para governar” e outros colocaram em causa o seu caráter. Do outro lado, aliados liberais, alguns de raça negra e de minorias étnicas, admitiram o erro mas sobrepuseram-lhe as medidas “inclusivas” e “multiculturais” do Executivo.

Na noite em que foi esmagadoramente eleito, em 2015, Trudeau anunciou “um governo que acredita profundamente na diversidade”. E nos anos seguintes assumiu-se como um porta-estandarte global da inclusão. Elogiado pelo aparente compromisso anunciado, aplicou políticas que contrastaram com as de Trump no país vizinho: recebeu 25 mil refugiados sírios só no primeiro ano (mais de metade assistidos pelo governo) e nomeou um gabinete jovem e etnicamente diversificado, com sete dos 35 membros de minorias étnicas. Em 2018, colocou nas notas de 10 dólares a cara da empresária afro-canadiana Viola Desmond, que desafiou a segregação racial numa sala de cinema em 1946.

“Blackface” servia para ridicularizar negros até há 60 anos

Pintar a pele de castanho ou preto para representar pessoas negras pode ser encarado como racista e ofensivo, sobretudo nos Estados Unidos e Canadá, países com longo currículo no que diz respeito a opressão e humilhação racial. A prática, conhecida como “blackface” ou “brownface”, era usada em espetáculos de entretenimento dos séculos XIX e XX com o objetivo de caricaturar pessoas de origem africana, que na altura nem podiam fazer parte do público, tão-pouco subir ao palco.

Além de se pintarem com tinta, carvão ou cortiça queimada, os artistas brancos que vestiam a pele de negros desenhavam grandes lábios e reforçavam estereótipos negativos, representando pessoas pobres, preguiçosas, ignorantes e desonestas, e verbalizando vernáculos enquanto dançavam e cantavam. O compositor do hino nacional do Canadá, Calixa Lavallée, era um dos principais artistas a usar a “blackface” em espetáculos.

Nos EUA, as atuações de Jim Crow (“Corvo”, como eram chamados alguns escravos no sul do país), personagem criada pelo comediante Thomas D. Rice, deram origem às Leis de Jim Crow, que institucionalizaram a segregação racial nos Estados do Sul e vigoraram até à década de 60. A própria Disney contribuiu para o preconceito quando deu esse nome a um dos corvos do filme “Dumbo”, que eram músicos, ladrões e tinham sotaque africano. A prática também chegou à Broadway e a filmes de Hollywood. Era o “blackface” enraizado na cultura pop.

A pele do outro não pode ser a nossa fantasia

A investigadora Catarina Martins, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, especializada em estudos culturais e pós-coloniais, considera que “é preciso ter sempre em conta a carga histórica e discriminatória” associada ao “blackface”, mesmo quando este é feito de forma aparentemente inocente. “Não somos donos das nossas práticas. Mesmo sem intenção de ferir, há que ter consciência de que pode haver outras leituras. Temos que legitimar que as pessoas que olham para ali e se veem caricaturadas possam não gostar”, disse ao JN. Questionada sobre os casos dos programas musicais de televisão em que os participantes interpretam artistas com cor de pele diferente, aponta que são “assumidos como performance”. Mas “se for uma paródia, é perigoso, não pode ser lido fora da História, é um sinal de discriminação em todo o mundo”. E reforça: “A pele do outro não pode ser a nossa fantasia”.

Pode ser uma ridicularização de uma condição que não é aceite normalmente nas sociedades em que vivemos

Boaventura Monjane é jornalista, ativista social, investigador e estudante de Doutoramento em Póscolonialismos e Cidadania Global em Coimbra. Mas foi mais como homem africano que falou ao JN. “Mesmo que a intenção do primeiro-ministro não tenha sido ridicularizar ou ofender, penso que pode ser ofensivo, na medida em que os sujeitos que se tenham ofendido com isso percebem as representações que se fazem sobre eles a partir do que representa, na sociedade em que estão, ser o que são”. Da mesma forma, exemplifica, a imitação de “um deficiente físico, um gay, um trans” por alguém que não o é “pode ser extremamente ofensiva” e lida como “uma ridicularização de uma condição que não é aceite normalmente nas sociedades em que vivemos”.

“Pode ser que haja uma intencionalidade artística nalgumas pessoas que se pintam de uma determinada forma ou que imitam determinadas características, mas é preciso ver quem o faz, quando o faz, como faz e em que contexto. (…) É preciso compreender qual é o publico que vê e ouve, qual é a mensagem que se quer transmitir com isso”, defendeu.

Pode então vir à cabeça uma questão pertinente, mas simplista. Se alguém de raça negra se pintar de branco, incorre no mesmo perigo de ofender? Para Boaventura, “não se pode concluir que seja o mesmo”. “Teríamos que ver concretamente caso a caso, mas penso que seria desonesto fazer essa comparação, na medida em que nada se compararia à representação caricaturada de um escravo, de um negro, de um árabe, de um indiano de castas mais baixas. O contrário é sempre uma falácia. É um discurso que desvia o foco da questão”.

Quanto ao caso específico do primeiro-ministro canadiano, o académico julga que o pedido de desculpas “é de louvar”, mas “não resolve o problema todo estrutural, institucional, histórico e cultural de se olhar as pessoas não brancas como sujeitos inferiores”. “Haveria que demonstrar com atos concretos e mais convincentes (…) o que significa o seu pedido de desculpas e o que significou pintar-se de negro”, rematou.

Rita Salcedas,

JN/MS

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