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Papa Francisco no Canadá: Porquê o pedido de desculpas?

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O mundo está de olhos postos no Canadá. A visita papal de seis dias, que teve início no domingo, 24 de Julho, veio consolidar a necessidade desta instituição religiosa pedir perdão junto dos sobreviventes indígenas de escolas residenciais canadianas destinadas a acabar com sua cultura. Vamos perceber o que está concretamente em causa nesta visita penitencial, o que eram as escolas residenciais e o trajeto de chegada ao presente.

As escolas residenciais

Este sistema era essencialmente uma rede de internatos para povos indígenas. A rede foi financiada pelo governo canadiano e era administrada por igrejas cristãs, sendo a igreja católica responsável por 66% das escolas. O sistema escolar foi criado para isolar as crianças indígenas da sua própria cultura e religião nativas, a fim de assimilá-las forçadamente à cultura canadiana dominante. Milhares de crianças foram retiradas das suas famílias, privadas das suas línguas nativas e tiveram mesmo de mudar de nome. Muitas foram expostas a abusos físicos, psicológicos e sexuais. Há ainda evidências de que os alunos foram usados como cobaias em experiências científicas que envolveram desnutrição intencional, ensaios de vacinas, estudos sobre perceção extrassensorial, amebicidas, isoniazida, hemoglobina, enurese noturna e dermatoglifia. Nestas instalações, viviam em espaços sobrelotados, com falta de saneamento básico e sem assistência médica. Muitas morreram por violência, desnutrição, doenças e suicídio.

As escolas foram propositadamente localizadas a longas distâncias das comunidades indígenas, com o objetivo de minimizar o contacto entre as famílias e os filhos. As visitas dos pais foram ainda mais restritas através de um sistema de passes projetado para confinar os povos indígenas às reservas. Deste modo, as crianças chegavam a passar vários anos sem qualquer contacto com a família.

Cerca de 150 mil crianças foram levadas para estas escolas e o número de mortes e desaparecimentos permanece até hoje desconhecido, em parte devido à prática de enterrar os estudantes em covas sem identificação. As estimativas variam de 3.200 a mais de 30.000.

A frequência destas escolas foi obrigatória de 1894 a 1947. No entanto, a última escola residencial financiada pelo governo federal só fechou em 1997. O sistema gerou casos de stress pós-traumático, alcoolismo, abuso de substâncias, suicídio e trauma intergeracional que persistem nas comunidades indígenas até hoje.

A descoberta da verdade

Em 2008 foi criada a Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth and Reconciliation Commission – TRC) para descobrir a verdade sobre as escolas. A comissão conseguiu reunir cerca de 7 mil declarações de sobreviventes de escolas residenciais em todo o Canadá. O relatório da TRC concluiu por fim que este sistema escolar foi equivalente a um genocídio cultural. Em 2021, milhares de sepulturas não identificadas foram descobertas no terreno de antigas escolas residenciais. Em Maio, os restos mortais de 215 crianças foram encontrados enterrados no local da Kamloops Indian Residential School, em British Columbia. Em Junho, cerca de 751 sepulturas foram encontradas na Marieval Indian Residential School em Saskatchewan. Ainda no mesmo mês, a Baixa de Lower Kootenay relatou a descoberta de 182 sepulturas perto da Escola Missionária de St. Eugene, British Columbia. Os restos mortais das crianças foram exumados destas áreas, sendo que muitas mais continuam a ser procuradas e investigadas.

A reconciliação governamental

Foi só em 2008 que o primeiro-ministro do país, na época Stephen Harper, fez um pedido público de desculpas em nome do Governo do Canadá e da Câmara dos Comuns. Quase dez anos depois, em 2017, o primeiro-ministro Justin Trudeau emitiu um pedido formal de desculpas aos sobreviventes das escolas e às suas famílias, reconhecendo que os alunos sofreram múltiplas formas de abuso no enquadramento do pensamento colonial que moldou o sistema escolar. Em 2021, o governo do Canadá proclamou o dia 30 de Setembro como um feriado nacional mandatório: o “National Day for Truth and Reconciliation”. Esta data já era assinalada desde 2013 como o “Orange Shirt Day”, escolhida por ser a época do ano em que as crianças indígenas eram retiradas das suas famílias e levadas para as escolas. Ainda em 2021, o governo anunciou que os cidadãos destas comunidades poderão agora resgatar os seus nomes verdadeiros em documentos de identificação oficiais e ainda que vão passar a estar incluídos no juramento da cerimónia de obtenção de cidadania assim como nos manuais informativos para os recém-chegados ao país.

A reconciliação religiosa

Enquanto as demais comunidades religiosas manifestaram as suas primeiras desculpas no final de 1980 e início de 1990, a igreja católica ainda não se tinha pronunciado. Em abril deste ano, quando um grupo de sobreviventes visitou o Vaticano, o pontífice surpreendeu ao fazer um pedido de desculpas durante uma audiência privada. O Papa Francisco expressou a “tristeza e a vergonha” que sentiu “pelo papel que vários católicos, particularmente aqueles com responsabilidades educacionais, tiveram em todas essas coisas que vos feriram, nos abusos que vocês sofreram e na falta de respeito demonstrada pela vossa identidade, cultura e valores espirituais”. O Papa Francisco proferiu ainda: “Pela conduta deplorável desses membros da igreja católica, peço perdão a Deus e quero dizer-vos de todo o coração: sinto muito. Junto-me aos meus irmãos, os bispos canadianos, para pedir o vosso perdão”. Após a viagem a Roma, o comité de sobreviventes apresentou uma proposta de pedido de desculpas à Conferência Canadiana de Bispos Católicos.

Uma ferida ainda aberta

Apesar do processo de reconciliação, algumas comunidades estão hesitantes porque ainda sentem que a sua cultura, territórios e valores continuam a ser desrespeitados, além de verem as suas preocupações menosprezadas pelos planos de desenvolvimento do país. Por outro lado, Cynthia Wesley-Esquimaux, com o pelouro da Verdade e Reconciliação na Universidade Lakehead, disse que “um pedido de desculpas papal, pelo menos, muda a história que os povos indígenas podem transmitir às gerações futuras. Agora terão uma história para contar aos seus filhos, netos, sobre a visita do Papa e sobre o seu reconhecimento de que esse dano foi feito. E ajudará a explicar aos canadianos que esta é a verdade da história do país”.

Telma Pinguelo/MS

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