O Sudário da verdade
Celebramos mais uma Páscoa – a festa da morte e ressurreição de Cristo – vida e morte num mesmo ritual. Independentemente das crenças de cada um, é curioso verificar como a palavra “paixão” tanto serve para designar dor como amor. Todos conhecemos a expressão estar loucamente apaixonado (viver uma grande paixão por alguém) e a Paixão de Cristo, que mais não é do que toda a dor representada pela Via Sacra, que culmina com a crucificação no Cólgota. Segue-se a descida da cruz para o colo de sua mãe, uma alegoria perfeita de quem regressa ao ventre inicial, e que a estatuária designou por Pietá, palavra latina que quer dizer Piedade.
Uma mãe que assiste impotente à morte de um filho, só pode ser digna de piedade, porque esta perda subverte a lei natural da vida, em que os pais deveriam partir primeiro. Lobo Antunes já nos recordou, por várias vezes, a reação da mãe à perda de seu filho Pedro:
– Uma mãe não tem o direito de estar viva com um filho morto.
Infelizmente, e sem direito a representação, há todos os dias Pietàs anónimas a sofrer o silêncio clamoroso de uma dor infinita, porque o luto pelos filhos, tal como o de Maria, não tem um tempo definido.
Há festas religiosas, como é o caso da Páscoa, que, pelas cores utilizadas (o roxo das vestes e dos pendões), a música fúnebre a acompanhar as procissões, onde se exibem os instrumentos do martírio, carregam um simbolismo todo ele voltado para o luto.
Mesmo aqueles que vivem momentos de hesitação entre a crença e a descrença na morte de Cristo, não podem deixar de se sentir tocados quando, na noite de quinta-feira, toda a vila do Sardoal fica às escuras e a procissão dos fogaréus rompe a negritude da avenida principal para se dirigir até ao alto do Convento. A caminhada lenta e de declive acentuado, ladeada de freixos centenários, dá-nos a sensação da subida até ao Getsêmani, conhecido por jardim das oliveiras, onde Cristo passou a derradeira noite orando. Antecipando o sofrimento a que seria sujeito, ainda dirigiu ao pai uma última súplica: “Se for possível, afasta de mim esse cálice”!
A acreditar nas escrituras, orou no recolhimento da solidão mas, como seres relacionais que somos, sentiu necessidade de uma despedida, representada pela última ceia com os discípulos, ganhando a refeição e a mesa a força simbólica do convívio, porque é em grupo que partihamos o nosso mundo interior de sentimentos e emoções que dão sentido à vida.
Falar ou escrever sobre a morte, embora não seja fácil, deveria ser um tema recorrente no percurso de todo o nosso crescimento. Normalmente as crianças são poupadas às notícias sobre a perda de algum familar, em especial se lhes é muito próximo. Mais tarde, podem ocorrer situações como a que uma mulher de 82 anos testemunhou num “workshop” denominado “Apoio ao luto”.
Quando o seu marido morreu, o neto tinha apenas cinco anos. Face à ausência de uma figura tão presente na sua vida, a avó disse-lhe que o avô era mais uma estrelinha no céu. Mais tarde, a frequentar o primeiro ciclo, chegou um dia a casa muito furioso confrontando-a com a verdade: “Avó, tu mentiste-me! O avô não é nada uma estrelinha, está debaixo da terra a ser comido pelos vermes”.
Só, então, a avó ganhou coragem para o levar ao cemitério para visitar a campa do avô. O menino não o reconheceu na fotografia do epitáfio porque nunca o vira tão novo. Pediu, por isso, à avó que mudasse a fotografia. Aos olhos de todas as crianças, os avós são sempre velhinhos. E é esse o único sudário em que continuam a identificar-nos.
Aida Batista
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