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O Sudário da verdade

Celebramos mais uma Páscoa – a festa da morte e ressurreição de Cristo – vida e morte num mesmo ritual. Independentemente das crenças de cada um, é curioso verificar como a palavra “paixão” tanto serve para designar dor como amor. Todos conhecemos a expressão estar loucamente apaixonado (viver uma grande paixão por alguém) e a Paixão de Cristo, que mais não é do que toda a dor representada pela Via Sacra, que culmina com a crucificação no Cólgota. Segue-se a descida da cruz para o colo de sua mãe, uma alegoria perfeita de quem regressa ao ventre inicial, e que a estatuária designou por Pietá, palavra latina que quer dizer Piedade.

Pietà de Michelangelo na Basílica de S. Pedro
Pietà de Michelangelo na Basílica de S. Pedro

Uma mãe que assiste impotente à morte de um filho, só pode ser digna de piedade, porque esta perda subverte a lei natural da vida, em que os pais deveriam partir primeiro. Lobo Antunes já nos recordou, por várias vezes, a reação da mãe à perda de seu filho Pedro:

– Uma mãe não tem o direito de estar viva com um filho morto.

Infelizmente, e sem direito a representação, há todos os dias Pietàs anónimas a sofrer o silêncio clamoroso de uma dor infinita, porque o luto pelos filhos, tal como o de Maria, não tem um tempo definido.

Há festas religiosas, como é o caso da Páscoa, que, pelas cores utilizadas (o roxo das vestes e dos pendões), a música fúnebre a acompanhar as procissões, onde se exibem os instrumentos do martírio, carregam um simbolismo todo ele voltado para o luto.

Mesmo aqueles que vivem momentos de hesitação entre a crença e a descrença na morte de Cristo, não podem deixar de se sentir tocados quando, na noite de quinta-feira, toda a vila do Sardoal fica às escuras e a procissão dos fogaréus rompe a negritude da avenida principal para se dirigir até ao alto do Convento. A caminhada lenta e de declive acentuado, ladeada de freixos centenários, dá-nos a sensação da subida até ao Getsêmani, conhecido por jardim das oliveiras, onde Cristo passou a derradeira noite orando. Antecipando o sofrimento a que seria sujeito, ainda dirigiu ao pai uma última súplica: “Se for possível, afasta de mim esse cálice”!

A acreditar nas escrituras, orou no recolhimento da solidão mas, como seres relacionais que somos, sentiu necessidade de uma despedida, representada pela última ceia com os discípulos, ganhando a refeição e a mesa a força simbólica do convívio, porque é em grupo que partihamos o nosso mundo interior de sentimentos e emoções que dão sentido à vida.

Falar ou escrever sobre a morte, embora não seja fácil, deveria ser um tema recorrente no percurso de todo o nosso crescimento. Normalmente as crianças são poupadas às notícias sobre a perda de algum familar, em especial se lhes é muito próximo. Mais tarde, podem ocorrer situações como a que uma mulher de 82 anos testemunhou num “workshop” denominado “Apoio ao luto”.

Quando o seu marido morreu, o neto tinha apenas cinco anos. Face à ausência de uma figura tão presente na sua vida, a avó disse-lhe que o avô era mais uma estrelinha no céu. Mais tarde, a frequentar o primeiro ciclo, chegou um dia a casa muito furioso confrontando-a com a verdade: “Avó, tu mentiste-me! O avô não é nada uma estrelinha, está debaixo da terra a ser comido pelos vermes”.

Só, então, a avó ganhou coragem para o levar ao cemitério para visitar a campa do avô. O menino não o reconheceu na fotografia do epitáfio porque nunca o vira tão novo. Pediu, por isso, à avó que mudasse a fotografia. Aos olhos de todas as crianças, os avós são sempre velhinhos. E é esse o único sudário em que continuam a identificar-nos.

Aida Batista

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