Nestes tempos diferentes que vivemos, as crianças são uma das nossas maiores preocupações. Por serem mais frágeis, por terem que ser protegidas por nós – nós que andamos ainda um tanto ou quanto perdidos na forma mais eficaz de nos protegermos.
Os daycares fecharam em março, no início da pandemia criada pela covid-19, e começaram a ter autorização de reabertura no fim de junho, início de julho. E reabriram. Com medo, com mil restrições, com menos crianças, com muitos mais cuidados, mas reabriram. Nesta edição do jornal Milénio Stadium, tivemos a oportunidade de falar com Antónia Pedra, proprietária do Alton Kids Child Care Centre, em Burglington, que recebe crianças com idades compreendidas entre os 15 meses e os 12 anos. Ficámos a entender um pouco melhor as preocupações e angústias de quem gere um dia a dia incerto, tentando sempre, na medida do possível, transmitir uma sensação de normalidade para as crianças com quem diariamente lidam. Estes educadores não têm tido uma tarefa fácil: educar com amor, mesmo que com receio e à “distância”.
Milénio Stadium: O que mudou no funcionamento do seu daycare com a pandemia?
Antónia Pedra: Mudou quase tudo. Desde termos praticamente metade das crianças que tínhamos quando isto começou, em março, até às rotinas das próprias professoras – as limpezas, a forma de lidar com as crianças e também com os pais.
MS: A interação entre as próprias crianças também é diferente?
AP: É claro, apesar de nós tentarmos e fazermos de tudo para que a diferença não se sinta muito. Temos as orientações do Ministério da Saúde e falam-nos em manter dois metros de distância, por exemplo, e isso é impossível para uma criança… O próprio uso das máscaras é difícil, às vezes as crianças têm medo… Nós, enquanto educadoras, temos medo de falhar também…
MS: Mas sente medo de falhar em que sentido?
AP: Porque este espaço é a casa deles, nós fazemos o melhor possível para que eles se sintam confortáveis…
MS: Sente que falha ao impor essas regras, é isso?
AP: Sim… Nós tentamos seguir os critérios que nos são impostos pelo governo, mas é impossível seguir tudo porque é difícil, por exemplo, ver uma criança a chorar e dizer “ok, senta-te aí, a dois metros de distância, que já vemos o que se passa”. É muito difícil… Nós temos que ir ter com a criança e ver o que se passa, ou dar-lhe um carinho e é muito difícil de gerir isto tudo.
MS: Estará também a Antónia numa constante aprendizagem?
Constantemente. Sempre, sempre, sempre. Porque é muita informação. As notícias estão sempre a mudar, as informações que vêm do Ministério da Educação estão sempre a mudar, as recomendações do Ministério da Saúde também… Por isso estamos em constante aprendizagem e adaptação. É muita coisa para uma pessoa gerir ao mesmo tempo.
MS: Como é que acha que as crianças estão a reagir a tudo isto? Como é que sente que as crianças têm estado? Ansiosas?
AP: As crianças são um livro aberto, adaptam-se muito depressa. Para eles o mundo é agora assim. Quando tudo fechou, em março, no início da pandemia, eles ficaram com os pais aquele tempo todo e depois vieram novamente para nós… Eles adaptam-se. Eu até acho que quando eles vieram para nós depois no princípio de julho, eles até estavam contentes! Já estavam fartos de estar em casa (risos). Mesmo os mais pequeninos, estavam contentes por voltar.
MS: Mas acha que eles têm algum medo?
AP: Não, não. Para eles a vida agora é assim. Agem com normalidade. Muitos deles usam as máscaras, mesmo os mais pequeninos. Veem os pais e já estão habituados a essa rotina agora. Eles adaptam-se muito depressa. Acho que as crianças reagem melhor que os adultos, nós temos as nossas… inseguranças! (risos) Estamos rodeados de mais informações. Talvez saibamos demais…
MS: O que mudou em si, enquanto responsável pelo espaço, na forma de ensinar a suas crianças?
AP: A forma de ensinar está a mudar. Mesmo que nós tentemos trabalhar com o máximo de naturalidade, há sempre algo na nossa mente que nos faz agir diferente… “olha que tens que manter a distância; “olha que se fizeres X, depois Y pode acontecer”. Mesmo que tentemos fazer as coisas “normalmente”, eu acho que nos acanhamos. Já não temos aquela espontaneidade de ir a correr quando uma criança chora e dar-lhe um abraço, por exemplo… Agora há sempre uma “campainha” na nossa cabeça que nos diz “não, não podemos fazer isto, vamos ter problemas por causa disto”.
MS: Estará a pandemia a moldar a nossa forma de ser?
AP: Eu acho que nós vamos sentir o efeito que isto terá nas pessoas, talvez daqui a cinco, 10 anos… Acredito que estamos a prejudicar muito as crianças. Estamos com medo constante de apanhar o vírus e de o transmitir para alguém, aquele sentimento de culpa “será que tenho o vírus e vou contagiar as crianças?”; ou “será que vou infetar as minhas trabalhadoras?” ou até “será que vou para casa e contamino o meu marido, os meus netos? Ou à minha mãe, que é mais velha?” … É aquela pressão constante e o medo sempre na minha cabeça. Não é só o nosso próprio medo, mas o medo também dos pais.
MS: Os pais transmitem-vos alguma pressão?
AP: Eles sentem que se acontecer alguma coisa é culpa deles, sabe? Se acontecer alguma coisa aos filhos, porque eles voltaram à vida “normal”, eles pensam que é culpa deles e carregam esse peso. E nós, enquanto educadores, claro que também temos sempre na nossa cabeça “ai se acontecer alguma coisa, como é que os pais vão reagir?” …E depois é a falta de apoio do Ministério da Saúde que nos deixa mais preocupados. Claro que uma criança vai espirrar, claro que vai tossir, isso acontece… As crianças vão ficar doentes, claro, principalmente nesta altura do ano, é normal que isso aconteça… Mas como é que vamos obrigar uma criança a ficar em casa 14 dias se ela espirrar, por exemplo? É difícil gerir isto tudo.
MS: Que apoio gostaria de ter mais por parte do governo?
AP: Mais compreensão. Todos nós somos pessoas humanas, todos nós temos os nossos sentimentos… Acho que é uma falta muito grande de apoio quando não percebem a pressão que nós temos ao tentar fazer o melhor que conseguimos, nas condições em que vivemos, de forma a que seja o melhor para as crianças, o melhor para os pais, o melhor para os nossos empregados… E o governo o que faz é pressionar-nos, porque se falhamos com algo, por muita boa vontade que tenhamos, temos logo o aviso que vamos ter uma multa. Se não fizermos tudo o que eles mandarem fazer e da forma que mandam fazer, temos sempre a “ameaça” por parte deles, nesse controlo apertado… Nós sabemos as regras, as restrições, mas a situação em si já é má e temos uma pressão gigante em cima de nós, e ainda sem a compreensão deles, pior ainda.
MS: Tem receio, de certo modo, do impacto que a pandemia poderá deixar nas crianças?
AP: Eu acho que serão adultos diferentes. Eu gostava de estar enganada, eu gostava mesmo que não fosse assim, mas penso que vamos notar uma grande diferença nestas crianças que estamos a educar agora, nestes tempos de pandemia. Até março deste ano, nós éramos os primeiros a incentivar as crianças a abraçarem-se, a dar um beijinho nos amigos quando estão mais tristes, etc… Agora não. Agora é “não toques”, “não abraces”, “não faças isso, não estejas tão perto, vai lavar as mãos”. Acho que vamos ver que estas pessoas vão crescer e ser diferentes – isto vai ter um impacto em nós adultos, quanto mais nestas crianças.
MS: Será que serão adultos um bocadinho mais… frios?
AP: Eu acho que sim. Porque eu vejo até nas minhas netas… Elas fora e nós dentro, sempre com “no hugs”… A mais pequenina, com quatro anos, estava sempre a questionar a mãe: “mas quando é que eu posso abraçar a vovó? Tenho saudades dela, tenho saudades de abraços!”. Mas pode ser que isto passe e eles nem sequer se lembrem… Pelo menos é o que eu espero!
Catarina Balça/MS
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