O estudo do folclore e da etnografia ajuda-nos a compreender a riqueza existente da nossa cultura, tradição popular, das nossas identidades nacionais.” – Daniel Café

Daniel Café, nasceu no lugar de Gouxaria, freguesia de Alcanena. Com poucos meses de idade emigrou com sua família para Winnipeg, Manitoba (Canadá) onde, aos 12 anos, teve o primeiro contacto com o folclore português integrando o Portuguese Folk Dancers da Associação Portuguesa de Manitoba. Ao regressar a Portugal em 1984, trazendo experiência e participação no campo do folclore português, fundou o Rancho Folclórico de Gouxaria com outros membros da comunidade sendo o sócio número um daquela instituição. Em 1986, fruto de um profundo trabalho de pesquisa e recriação histórica e cultural, o Ranho Folclórico de Gouxaria tornou-se sócio efetivo da Federação do Folclore Português apenas um ano e meio após a sua fundação.
Já em Portugal completou a sua formação académica iniciada com o Curso de Música do Pietro Diero Music Conservatory (Canadá); a Licenciatura em Línguas e Literaturas modernas já foi tirada na Universidade de Lisboa. Depois veio;a Pós-graduação em Ciências da Educação (Universidade Aberta); o Mestrado em Museologia (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias – ULHT) e o Doutoramento em Museologia Social (ULHT).
É o atual Presidente da Federação do Folclore Português, instituição responsável pela preservação, promoção e valorização das tradições do Folclore de Portugal. Com uma vida dedicada ao associativismo e à cultura tradicional, Daniel Café mantém uma ligação profunda à diáspora portuguesa, graças aos anos que viveu no Canadá. Essa experiência permitiu-lhe testemunhar de perto o papel do folclore como elo entre gerações e como instrumento fundamental na construção de identidades comunitárias fora do país de origem. Nesta entrevista, refletimos com ele sobre a importância do folclore como veículo de memória coletiva, reconstrução histórica e afirmação cultural — tanto em Portugal como entre as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo.
Milénio Stadium: Na sua opinião, em que medida os usos e costumes retratados no folclore contribuem para compreendermos as nossas raízes sociais e culturais?

Daniel Calado Café: Eu diria que o trabalho dos grupos de folclore é central nessa mesma compreensão, porque cabe aos grupos de folclore, aqueles que efetivamente fazem um trabalho baseado no folclore e não encaram esta área cultural como sendo uma atividade meramente recreativa. Também o é, também é recreativo, mas, acima de tudo, deve assentar no pressuposto central da investigação, do estudo das tradições populares de uma comunidade, de uma região, de uma localidade, para que possamos entender e compreender melhor as diversas identidades que existem no nosso país e que cuja súmula acaba por construir aquilo que é a identidade nacional.
A identidade nacional é o somatório de todas as identidades portuguesas que, pelas suas características geológicas, geográficas, culturais e identitárias, formam este povo português e, portanto, diria que é central, mesmo, a questão do estudo da tradição popular. O estudo do folclore e da etnografia ajuda-nos a compreender a riqueza existente da nossa cultura, tradição popular, das nossas identidades nacionais.
MS: Olhando para outros países, o nosso país é extremamente rico, é diverso. O que é que justifica, num país tão pequeno, haver tanta diversidade?
DCC: Eu diria que o nosso contexto social e político, histórico, levou a isto. Repare que Portugal é o único país do mundo, o único país do mundo, sublinho, que tem esta variedade tão grande e ainda tão presente na memória das pessoas. Nós vivemos numa Península Ibérica, temos uma única fronteira, que é com Espanha, isto é, somos um país periférico, enquanto a Europa andou durante séculos e séculos em lutas territoriais e de fronteiras. Nós temos uma fronteira muito estável, praticamente desde a restauração da nossa independência, em 1640. As nossas comunidades permaneceram intactas, permaneceram salvaguardadas da guerra,. Nós passamos aqui por uma Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial que devastou a Europa. E nós aqui no nosso canto, no nosso retângulo à beira-mar plantado, como dizia Fernando Pessoa, que passou ileso. Portanto, nós tivemos a nossa memória coletiva intacta, transmitida de geração em geração, sem qualquer tipo de entrave. Depois tivemos no século XX o Estado Novo, tivemos a ditadura. E a ditadura o que é que fez? Fez com que isto estagnasse completamente. Portugal não evoluiu, não se desenvolveu? E foi uma das coisas terríveis que nos aconteceu em termos de nação, em termos de país, porque não conseguimos evoluir democraticamente, não havia democracia, não conseguimos evoluir economicamente, não conseguimos evoluir culturalmente e ficarmos presos a um passado. Pelo bem e pelo mal. E pelo bem o que aconteceu foi que muito daquilo que era a tradição popular permanecesse intacta nas nossas aldeias e nas nossas vilas. Quase até 1974, que era o foi o ano da Revolução de Abril e, portanto, até ao último quartel do século XX, tivemos um país intocado em termos de cultura tradicional e popular. Porque é que nós hoje, nas arcas dos nossos avós, ainda encontramos tanta coisa? Porque ela não foi destruída? Ela esteve ali guardada nas arcas. Décadas e décadas e décadas foram transmitidas de geração em geração e chegaram aos nossos dias. Tal como as danças, as cantigas, os trajes, tudo isto faz parte da nossa identidade e manteve-se intacto. Não há mais nenhum país do mundo onde isto tenha acontecido. Nenhum.
MS: Concretamente com a sua experiência de vivência como emigrante aqui no Canadá, onde teve os primeiros contactos com esta realidade do mundo do folclore, como é que avalia a envolvência das comunidades neste fenómeno cultural que é o folclore?
DCC: Eu diria que o folclore tem um papel central nas comunidades da diáspora, um papel central na ligação umbilical com Portugal. No tempo em que estive no Canadá, que foi desde o nascimento até aos meus 17 anos, eu era um canadiano igual a todos os outros que como eu tinham ascendência portuguesa.
Na adolescência, procuramos descobrir-nos a nós próprios, quem é que eu sou? Onde é que nos encaixamos, afinal? Sou canadiano na escola e no meu dia a dia. Tenho os meus amigos canadianos. Sou igual a eles, falo igual a eles, tenho os mesmos princípios, valores, custos, etc. Ou sou português porque quando chego a casa falo português e ouço as histórias de Portugal e é tudo imbuído noutro ambiente, noutra atmosfera? E isso levou-me, efetivamente, a procurar respostas na Associação portuguesa local (Winnipeg), precisamente envolvendo-me com outras pessoas como eu, que tinham a mesma realidade – de dia somos canadianos, estamos envolvidos na sociedade tal como outro qualquer, mas à noite e nos fins de semana e noutros momentos de convívio e tal, somos portugueses.
Somos descendentes de portugueses, falamos português, temos outro contexto. E, portanto, foi nesse momento que, ao entrar para a associação, entrei também no grupo de Folclore. E foi, digamos, para mim, uma coisa fabulosa. Porquê? Porque eu consegui sentir na música o ser português. Eu conseguia ver no trajar uma maneira de ser português e senti uma expressão no trajar. Eu vi aqui um sentir diferente, uma realidade artística diferente, uma realidade sentimental também diferente do que eu encontrava no Canadá. Então eu percebi rapidamente que não sou nem uma coisa nem outra – sou uma mistura dos dois.
MS: Relativamente ainda ao folclore que marca as comunidades portuguesas, nomeadamente aqui no Canadá. Entretanto regressou a Portugal e tem agora a responsabilidade de estar à frente da Federação do Folclore Português, que é o órgão que superintende e tenta garantir a qualidade dos grupos folclóricos que o país mantém. Como é que olha para os grupos que existem nas comunidades e a forma como eles trabalham?
DCC: Temos bons exemplos e temos maus exemplos, tal e qual como aqui em Portugal. É a mesma coisa em território nacional. Temos bons exemplos de grupos que fazem um trabalho muito sério, assente no estudo, na investigação, no trabalho de recolha. E depois temos grupos que são meramente recreativos e que inventam tudo e mais alguma coisa. Portanto, isso existe tanto na diáspora como em território nacional. A nossa mensagem na Federação de Folclore Português é efetivamente de que nós ou trabalhamos o folclore ou trabalhamos uma outra coisa qualquer.
Temos que ser sérios nisto. Temos que ser sérios. O trabalho de um grupo de folclore na diáspora é mais fácil, nalgumas vertentes muito mais fácil, do que aqui em Portugal. Porquê? Porque nós aqui temos que ir ao terreno, falar com as pessoas, investigar, registar, fazer recolhas, enquanto que os grupos que estão na diáspora não têm essa possibilidade. Então o que é que eles devem fazer? Devem selecionar um grupo de referência ou uma região de representatividade para poderem incidir o seu trabalho.
Agora, devem selecionar um grupo de referência que faz trabalho científico, faz um trabalho avalizado pela própria Federação. Isso é que é bom – trabalhar com essa base bem presente, bem assente. Porque é um esforço que depois é recompensado. Agora trabalhar com um grupo que não é sério, que não tem trabalho de investigação feito, é perder tempo, porque o vosso esforço na diáspora depois sai gorado e depois, aquilo que vão apresentar não tem substrato absolutamente nenhum. E é muito fácil haver esta tentativa de pessoas muito criativas, dos músicos e dos poetas muito criativos e começarem a inventar coisas. E não há necessidade nenhuma de inventar. Quando nós temos uma tradição tão rica, tão importante no contexto internacional, no contexto global, nós só temos é que nos cingir ao bom, aos bons exemplos, aos bons grupos que fazem este trabalho e à Federação de Folclore Português que está cá para orientar os grupos que estão no estrangeiro, sobre quais os grupos onde podem incidir a sua pesquisa, onde podem incidir o seu trabalho de recriação.
MS: Em que medida é que a Federação do Folclore Português trabalha para manter a autenticidade das tradições sem as cristalizar ou esvaziar de significado?
DCC: Estamos a falar de duas coisas diferentes. A primeira coisa é o folclore e a etnografia, que a gente não pode mexer. Aquilo é aquilo. Ponto final. Não há outra forma de fazer. As coisas estão assim. O folclore é o que era antigamente. Se era assim, é assim que a gente tem que fazer. Ponto final. Se nós estamos numa representação etnográfica, se nós estamos num espetáculo folclórico é isso que nós temos que fazer. É trajar como antigamente, dançar como antigamente, tocar e cantar como antigamente. Porque essa é a nossa matriz, a matriz que não se mexe.
O que é que os grupos de folclore podem fazer nos dias de hoje? É pegar nessa nossa matriz, mas fora do contexto de espetáculos folclóricos. Podemos fazer outro tipo de espetáculo qualquer. Um espetáculo de dança, dança contemporânea ou dança de inspiração folclórica. Podemos fazer tudo isso, mas fora do contexto. E sempre explicar ao público que isto que nós estamos a fazer não é uma representação folclórica, é um espetáculo com inspiração folclórica. E isso podemos fazer. Não há problema, podemos modificar, podemos estilizar, não há problema, porque o que nós estamos a fazer é trazer ao presente a nossa expressão da matriz popular. Ok, isso é outra coisa. Nós aqui em Portugal temos muitos exemplos disso. O problema é quando em Portugal eu vejo grupos que fazem isto e não têm a preocupação de separar as águas. É preciso separar as águas. Uma coisa é folclore, matriz popular, matriz identitária. As matrizes são isso, são matrizes. Não se podem mexer, não se podem adulterar, porque senão deixa de ser uma matriz. É como um museu… como é que eu vou apresentar um objeto histórico no museu? Vou embelezá-lo? Vou pintá-lo? Não vou fazer nada disso. Mantenho a autenticidade daquela peça do museu, não é? Agora podemos pegar nisso e fazer uma atividade com as crianças no ateliê. Sim, podemos. Vamos pôr as crianças a fazer um desenho, a fazer uma recriação, a reconstruir o seu próprio objeto museológico com inspiração no original, mas o original tem que estar intocado. O original é original. E o problema todo é quando se misturam as coisas. Não se pode misturar.
MS: Muito obrigada pela sua disponibilidade em nos conceder esta entrevista.
DCC: Eu agradeço imenso a oportunidade que me foi dada para poder falar para o vosso jornal sobre este tema que é tão caro para mim e tão importante para a minha pessoa. Por aquilo que eu vivi no Canadá, o meu processo de aprendizagem que começou aí e também todo o trajeto que levei posteriormente ao regressar a Portugal e aprofundar esses mesmos conhecimentos. Eu sei quais são as dificuldades.
Compreendo perfeitamente as dificuldades que os grupos radicados no Canadá sentem e a Federação do Folclore Português está cá para vos ajudar. Tudo aquilo que haja necessidade de informação, de atualização, de algum contexto que precisem de vir atualizar, alguma formação que possam sentir necessidade. Nós estamos cá, nós estamos cá para ajudar. Os grupos da diáspora não estão sozinhos. Têm uma instituição que acompanha, que zela pelos seus interesses e que os pode orientar para que o vosso esforço de recriação da nossa cultura tradicional popular seja mais fácil e seja também muito mais produtiva. Portanto, estamos cá ao vosso dispor. Muito obrigado por tudo aquilo que que o jornal tem feito para divulgar a nossa cultura, tradição popular e também a própria instituição Federação de Folclore Português. Bem-haja a todos.
MB/MS
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