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Nova ordem mundial: Olhares sobre a guerra

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Algo parece estar a mudar na nova ordem mundial. Depois do trauma da Segunda Grande Guerra, o mundo organizou-se e viveu numa espécie de paz podre, mergulhando naquilo a que se chamou Guerra Fria. As guerras, as reais, as que matam inocentes, continuaram a existir, mas o mundo ocidental parecia preferir alhear-se e fazer de conta que nada estava a acontecer. Apenas quando se tocava em interesses económicos poderosos que afetavam a estabilidade financeira dos países mais poderosos, o Ocidente mostrava o seu poderio – veja-se o aconteceu quando o Iraque invadiu o Koweit. Tudo o resto era olhado com alguma indiferença como se não dissesse respeito ao resto da humanidade o facto de se estarem a cometer verdadeiras atrocidades em sítios mais ou menos remotos.

Mas a Rússia invadiu a Ucrânia e, como vamos perceber com a ajuda de Ian S. Spears, Professor Associado do Departamento de Ciência Política da Universidade de Guelph, e Dani K. Nedal, Professor Assistente do Departamento de Ciência Política e Munk School of Global Affairs & Public Policy, da Universidade de Toronto, o mundo está a mudar. Não necessariamente para melhor.

A guerra e o acordar do mundo

Em fevereiro de 2021, o mundo acordou para uma realidade que já muitos temiam há algum tempo – a Rússia invadiu as fronteiras da Ucrânia e trouxe a guerra para as portas da Europa. E de repente, a guerra e as suas consequências ganhou uma dimensão à escala global. Ian S. Spears explicou-nos que “esta é uma guerra europeia, mas tem implicações globais. É claro que há casos pós Segunda Guerra Mundial em que países europeus se desmoronaram em resultado da guerra; a dissolução da Jugoslávia é o exemplo mais notório. Mas as fronteiras da Europa Ocidental têm sido estáveis há décadas, e a ideia de que um país invadiria outro com a intenção explícita de o reincorporar num outro país é diferente. A ordem internacional está dependente do respeito pelas fronteiras existentes e da soberania (jurídica). Se esta ordem não puder ser defendida ou mantida, a preocupação é que as fronteiras de outros países estejam sujeitas a alterações, uma vez que os países procurarão reincorporar pessoas e territórios que consideram “seus”, mas que se encontram do outro lado de uma fronteira internacional. Não creio que esta ameaça deva ser exagerada, uma vez que a maioria dos países se contenta com as fronteiras como elas são ou pelo menos reconhece os benefícios da estabilidade. Mas é uma potencial ameaça a longo prazo”.

Já Dani K. Nedal, defende que “é cedo demais para afirmar com confiança qual será o efeito da guerra russo-ucraniana na ordem mundial. Episódios de revisão territorial por meio de força militar ou coerção são raros, mas não sem precedentes no pós-Guerra Fria, tendo ocorrido mais de 20 vezes nos últimos 30 anos. A resposta dos Estados Unidos à incursão russa desde fevereiro, contando com amplo apoio de parceiros europeus e a maioria de outros países ao redor do mundo, pode acabar reforçando a norma de inviolabilidade das fronteiras, ao contrário da reação tépida que a Rússia enfrentou depois de anexar a Crimeia em 2014 ou nos últimos oito anos de invasão no leste da Ucrânia. Isso sem falar dos vários conflitos “congelados” no território da ex-União Soviética, onde a Rússia frequentemente faz uso da força militar e viola fronteiras internacionalmente reconhecidas de países vizinhos, como Geórgia e Moldova. Muito vai depender de se os Estados Unidos conseguem manter a pressão sobre a Rússia, se a Ucrânia vai conseguir restabelecer o controlo sobre o seu território, se os países europeus vão continuar a apoiar a Ucrânia, etc.”.

A ambição de Putin

Após o fim da Guerra Fria, a União Soviética implodiu: das 15 repúblicas, 14 tornaram-se independentes. Permaneceu a Federação Russa. Gigante ainda muito poderosa, Vladimir Putin parece querer, basicamente, mostrar ao mundo que a Rússia ainda é uma grande potência. Ian S. Spears considera que “sim, essa é uma caracterização que é frequentemente feita das intenções de Putin. Claro que o poder – e o estatuto de grande poder – é uma questão complexa e abstrata. Em termos económicos, a economia russa é uma fração da de outras economias. E, no entanto, tem atualmente uma influência considerável sobre a Europa devido à dependência da Europa da energia russa. Os peritos russos salientam frequentemente que o próprio Putin lamenta a dissolução da União Soviética e pode estar a procurar a sua restauração. É evidente que Putin quer ser levado a sério”. Dani K. Nedal, lembra que “desde a queda da União Soviética, a Rússia sempre teve interesse em manter influência sobre os países no seu entorno imediato e em ser tratada de igual para igual pelas potências ocidentais. Em grande medida, a obsessão de Vladimir Putin em obter esse reconhecimento de status como grande potência, pela força se necessário, é um reflexo do fracasso ao longo das últimas décadas de “normalizar” a relação com as outras potências. A agressividade com a qual Putin tem se comportado e a transformação da Rússia em inimiga da ordem internacional liderada pelos EUA é, nesse sentido, produto tanto da nostalgia pelos tempos do império e do auge da Guerra Fria, quanto da frustração e quiçá inveja de quem ficou de fora. A isso se acrescenta a vulnerabilidade, real e imaginada, com a qual a Rússia se depara à medida que sua vizinhança se aproxima dos EUA, da União Europeia, e da NATO, reduzindo cada vez mais sua habilidade de influenciar a região e insular o seu regime contra influência estrangeira”.

A ameaça nuclear

Ian S. Spears volta à conversa para nos lembrar que há “um segundo aspeto desta guerra que tem implicações globais – a ameaça nuclear. Putin alarmou muitos, sugerindo que está preparado para se tornar nuclear. Há muito tempo que existe um “tabu” contra a primeira utilização de armas nucleares. Ninguém quer “normalizar” a sua utilização. Mas se Putin e a Rússia começarem realmente a perder esta guerra, a preocupação é que Putin possa estar disposto a usá-las para evitar a derrota total ou o colapso, ou, vingativamente, para infligir dor aos seus adversários. O tipo de armas nucleares que a Rússia poderia estar preparada para utilizar são as chamadas armas de “campo de batalha”, que têm rendimentos relativamente pequenos (poder explosivo). No entanto, a utilização de armas nucleares no teatro europeu seria obviamente sem precedentes. Desde que a Ucrânia desistiu das suas armas nucleares há décadas atrás, também se poderia imaginar um cenário em que a “lição” que outros países retiram disto é que estão melhor com armas nucleares ou que é um erro desistir delas. Em termos militares, a Rússia continua a ser formidável, embora o seu desempenho nos campos de batalha da Ucrânia possa pôr até isso em dúvida. Tem, no entanto, uma capacidade nuclear formidável, que precisa de ser levada a sério”.

Rússia e EUA e o cair da máscara do respeito mútuo

Que imagem tem Moscovo do outro lado, do outro grande ator internacional que são os Estados Unidos da América? Poderá o recuo dos Estados Unidos nos últimos anos ter contribuído também para este avanço por parte da Rússia? Ian S. Spears, cita o também cientista político John Mearsheimer da Universidade de Chicago, para afirmar que ele pode ter alguma razão quando afirma que a ofensiva da Rússia é “culpa do Ocidente”. É que segundo o professor da Universidade de Guelph, “o Ocidente tem mostrado um notável desrespeito pelas sensibilidades de segurança ou paranoia da Rússia. Como Mearsheimer argumenta, é difícil imaginar os Estados Unidos a aceitarem uma presença semelhante russa ou chinesa à sua porta (Cuba é aqui um exemplo relevante). Em termos de ciência política, chamamos a isto “o dilema da segurança” porque nunca é claro como se deve garantir a própria segurança. Se aumentar a sua presença militar, faz com que todos à sua volta se sintam inseguros e inclinados a tomar as suas próprias medidas de segurança. O que se segue frequentemente é uma espiral de acumulações militares e contra-acusações de que a outra parte é responsável por ter ameaçado a outra. Por outro lado, é plausível que a Rússia tenha subestimado a determinação do Ocidente em defender as fronteiras da Ucrânia e de outros Estados da Europa de Leste. Certamente tem havido nos Estados Unidos uma opinião de que uma Europa rica deveria assumir mais responsabilidade pela sua segurança. Putin presumiu provavelmente que todos compreendiam que a Europa Oriental estava dentro da esfera de influência da Rússia, e que embora a Europa pudesse protestar, eles não ajudariam ativamente na defesa da Ucrânia. Se esta explicação estiver correta, então este foi um erro dispendioso para Putin – e agora é difícil ver como é que ele se pode retirar desta situação”.

Dani K. Nedal, acha que “a liderança russa vê os Estados Unidos e o resto do Ocidente com um misto de frustração, inveja e ansiedade. A frustração e inveja têm a ver com a falta de reconhecimento e a perceção de que a abertura económica e liberalização política só geraram crises e não cumpriram as promessas de revitalização económica e salto na qualidade de vida. A ansiedade explica-se não só pelo medo do cerco militar criado pela expansão da NATO após o fim da Guerra Fria e pelo medo de perder a habilidade de dissuadir os Estados Unidos, mas também pela perceção da vulnerabilidade do regime político russo à ingerência estrangeira. Logo após sua ascensão à presidência, Putin passou a década seguinte fortalecendo os seus aliados nos serviços de segurança, reforçando a sua posição central nas redes de corrupção e cooptação, silenciando a imprensa e a sociedade civil, e a livrar-se de potenciais rivais políticos para consolidar seu controlo político. Assim se formou o ciclo vicioso. Quanto mais autoritário e agressivo Putin se tornava, mais o Ocidente o criticava e ameaçava”.

A segunda vida da NATO

Quando a Guerra Fria terminou, com a dissolução da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, a NATO parecia um animal adormecido, quase anestesiado. De certo modo, a organização da Aliança Atlântica parece renascer perante a ameaça russa a países que a integram. Como lembra Ian S. Spears, “desde o fim da Guerra Fria, o objetivo da NATO tem sido incerto. Os seus papéis limitados no Afeganistão e no Kosovo deram-lhe um sentido de propósito – embora apenas temporariamente e sem sucesso especial. Mas a invasão da Rússia levou agora a Finlândia e a Suécia a candidatarem-se à adesão à NATO e pode muito bem levar outros países a candidatarem-se à adesão; obviamente, a Ucrânia também procura a adesão. Se uma das razões para a invasão da Rússia foi para evitar a invasão ocidental das fronteiras russas, então a ofensiva de Putin saiu desastrosamente pela culatra”. Dani K. Nedal, prefere sublinhar que “até o momento, seria razoável dizer que a invasão russa teve o efeito exatamente oposto ao que Putin esperava ou gostaria de ter visto na NATO. Biden herdou uma NATO abalada pela crise de confiança na liderança americana, preocupada com seu papel num mundo orientado cada vez mais ao extremo-oriente, ameaçada pela ascendência da extrema-direita e erosão democrática em vários países-membros, e traumatizada pelo fracasso no Afeganistão. Até à fatídica intervenção, Putin tinha conseguido explorar essas fraquezas da NATO, bem como as vulnerabilidades criadas pela dependência energética europeia, sem contar com seu trunfo nuclear, para limitar o escopo das reações às agressões russas contra países vizinhos, incluindo a anexação da Crimeia em 2014 e a intervenção no leste da Ucrânia desde então”.

Os desafios da NATO

É absolutamente legítimo perguntar qual deve ser o posicionamento politicamente estratégico da NATO e Ian S. Spears considera que “os próximos passos da NATO deverão ser cuidadosamente calculados. Por um lado, a NATO não verá outra opção que não seja a de mostrar determinação. Por outro lado, dada a destruição que está agora a acontecer (e que continuará a acontecer) na Ucrânia, a NATO terá o cuidado de não provocar mais a Rússia. Finalmente, dados os custos imprevistos que a Rússia teve de absorver nesta desventura, há provavelmente quem, no seio de Washington, não tenha dificuldade em ver a Rússia a lutar e a enfraquecer ainda mais”. Por outro lado o professor assistente da Universidade de Toronto, Dani K. Nedal, sublinha que “a NATO continua a ter que lidar com questões difíceis como a possível adesão de novos membros, especialmente Ucrânia e Geórgia. Ambos os países têm parte do seu território ocupado por forças russas e disputado por separatistas apoiados pelo Kremlin. Admitir qualquer um dos dois sem resolver esses problemas colocaria a NATO em pé de guerra imediatamente, não só porque provocaria uma reação russa, mas porque permitiria que os países invocassem os artigos IV e V do Tratado do Atlântico Norte. É difícil imaginar os países-membros da aliança aceitando unanimemente essa possibilidade”.

O papel da China

E neste cenário de guerra o que se poderá esperar da China? Que papel tem desempenhado e desempenhará? Ian S. Spears responde de forma muito sucinta “o papel da China é incerto. Ao entrar no estatuto de superpotência, a China também pode prosseguir os seus próprios objetivos contraditórios em matéria de política externa. Como potência emergente, a China pode querer reforçar a ordem política, desde que essa ordem possa curvar-se aos interesses da China. Por outro lado, a China há muito que procura fazer as suas próprias alterações fronteiriças; especificamente a reintegração de Taiwan”. Sobre este assunto a visão de Dani K. Nedal leva-o a afirmar que “o papel da China é limitado. Até o momento, a China tem evitado envolver-se diretamente, sem oferecer à Rússia apoio retórico, mas também sem criticar abertamente, pedindo “a ambos os lados” moderação e diplomacia. A principal contribuição chinesa tem sido indireta, à medida que a emergência da China como enorme mercado consumidor, investidor, e fonte de divisas permitiu que a Rússia diversificasse o seu portfólio e reduzisse a sua dependência do Ocidente. Isso ajudou a limitar a vulnerabilidade da economia russa às sanções ocidentais que tinham a Rússia na mira desde 2014 e que se expandiram drasticamente depois da invasão. Sem essa válvula de escape, a economia russa estaria ainda mais quebrada do que já está”.

Madalena Balça/MS

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