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“Não sabemos trabalhar a diplomacia cultural”

Não sabemos trabalhar a diplomacia cultural-capa-mileniostadium
Vasco Sacramento. Crédito: Diário de Aveiro

A cultura sempre foi uma constante na sua vida: cresceu rodeado de músicos, escritores e políticos, e desde cedo se fascinou pelo mundo do espetáculo. Hoje é um dos maiores produtores culturais portugueses. Fundador e diretor geral da Sons em Trânsito (SET), empresa sediada em Aveiro que se dedica ao agenciamento – representa artistas como António Zambujo, Valete, Gisela João, Pedro Abrunhosa e Carolina Deslandes, entre outros -, produção de espetáculos e gestão de carreiras artísticas, promotor do Festival F e detentor da concessão da sala de espetáculos Capitólio, em Lisboa, Vasco Sacramento aceitou partilhar com o nosso jornal a estratégia adotada pela SET quando viu a sua atividade “praticamente reduzida a zero”, a sua opinião sobre a influência e capacidade da indústria musical portuguesa, a importância de iniciativas como os International Portuguese Music Awards e ainda sobre os traumas provocados pela pandemia que, na sua opinião, são coisa para “demorar algum tempo” a passar. Mas já diz o ditado que a esperança é a última a morrer e, no caso da cultura, a resiliência é, obrigatoriamente, o maior trunfo. 

Milénio Stadium: A pandemia afetou, como bem sabemos, diversos (senão todos) setores de negócio. No entanto, a cultura – que já batalha há muito tempo por se manter “à tona” – foi um dos que mais sentiu na pele o efeito negativo das restrições associadas à estratégia de combate à Covid-19. Como é que se vive – ou sobrevive -, golpe após golpe, neste meio?

Vasco Sacramento: Têm sido dois anos muito difíceis, porque de facto nós ficámos com a atividade praticamente reduzida a zero. Agora já estamos a retomar um bocadinho mas no primeiro ano, ano e meio, tivemos uma redução drástica no volume de atividade e obviamente quando se tem, para além da sua atividade profissional, uma atividade empresarial associada à cultura como eu tenho, com 25 postos de trabalho criados, obviamente que foi bastante assustador. Sabe que nós na cultura como estamos normalmente tão atentos ao imprevisto e lidamos sempre com tantas variantes que podem correr mal, digamos assim, também de alguma maneira já tínhamos uma capacidade de resiliência superior e tivemos que nos adaptar. Agora queremos é rapidamente voltar a trabalhar a 100%.

MS: Qual foi a abordagem adotada pela Sons em Trânsito para fazer face aos desafios trazidos pela pandemia? Que desafios encontraram neste mais de ano e meio no que à organização de eventos e promoção de artistas diz respeito?

VS: Sim, como nós estávamos impedidos de fazer espetáculos nos moldes habituais tivemos que nos adaptar, então optámos bastante pelo digital – foi a nossa primeira escapatória, digamos assim -, e fizemos um grande investimento no digital como forma de chegar ao público e de obter receitas. Depois também apostámos bastante em formas alternativas de nos apresentarmos, seja através dos espetáculos com lotação reduzida, com formatos diferentes, até aos formatos que na altura apareceram, em 2020, dos drive-ins, dos trios elétricos, etc., que foram na altura soluções possíveis de ser montadas. E depois, por outro lado, também já é uma aposta que nós já tínhamos feito bastante no digital e na relação com as marcas, com os patrocinadores, e foi também uma das nossas principais fontes de receita durante o período da pandemia. 

MS: A Sons em Trânsito representa alguns dos maiores nomes do panorama musical português. Entre esses nomes está, por exemplo, Bárbara Bandeira, que cada vez mais se tem afirmado e destacado, e que inclusivamente participou na mais recente edição do International Portuguese Music Awards. Como vê iniciativas como esta, que têm como objetivo divulgar e reconhecer conquistas notáveis na indústria da música, alcançadas por artistas internacionais de ascendência portuguesa? Enquanto agente de artistas está atento ao que fazem os músicos portugueses que vivem fora de Portugal?

VS: Acho muito importante. Nós temos um país muito pequeno, com um mercado naturalmente pequeno – somos poucos, somos 10 milhões em Portugal – e temos um país com uma área pequena em que é muito fácil dar a volta ao país, digamos assim. Ou seja, num verão, ou às vezes num  ano inteiro, consegue-se facilmente tocar em todas as regiões do país e chegar mais ou menos a todos os públicos. Isso faz com que nós tenhamos que encontrar alternativas – quer estejamos a falar de artistas mais mainstream, de maior dimensão, que depois naturalmente também facilmente se sentem impulsionados para alargar o seu mercado e o seu território porque rapidamente conseguem cobrir o país todo, quer seja de artistas mais de nicho – e se o mercado já é pequeno, então para artistas de nicho ainda mais pequeno se torna. E portanto o alargamento do nosso mercado é fundamental. Assim sendo, as duas formas mais óbvias e mais imediatas de nós alargarmos o nosso mercado, de expandirmos a música portuguesa, será sempre ou através dos países de língua oficial portuguesa ou através da nossa diáspora, e nós aí temos que aprender um bocadinho com os hispânicos: eles têm uma forma muito mais descomplexada e muito mais inteligente de utilizar a sua diáspora, como se verifica, por exemplo, com as comunidades hispânicas residentes nos Estados Unidos, que são fundamentais para a formação da cultura hispânica. Não só dos artistas musicais como até da literatura e até das séries de televisão – as séries de televisão espanholas são fortíssimas neste momento no mundo inteiro. E nós não aproveitamos, não somos muito bons a fazer diplomacia cultural, temos uma rede diplomática espalhada pelo mundo inteiro que pouco se dedica à cultura portuguesa, não ajuda muito a criar lobby, a criar influência, não sabemos trabalhar a diplomacia cultural. E portanto as iniciativas que existem, como é o caso dos IPMA, são fundamentais. Eu trabalho há muitos anos na exportação de música portuguesa, nomeadamente o fado em particular, e sei a força e o poder que a nossa diáspora pode ter.

MS: E por falar em símbolos portugueses… o fado, um dos elementos mais importantes da nossa identidade, foi em 2011 considerado pela UNESCO Património Imaterial da Humanidade. Mais recentemente, em 2017, Salvador Sobral venceu, com a mais alta pontuação de sempre, o Festival da Eurovisão. Que importância atribui a esta e outras conquistas que foram sendo alcançadas nos últimos anos na música portuguesa?

VS: O trabalho que tem sido feito, nomeadamente pelo fado – e não só, por outros artistas de outros géneros… temos o caso do jazz com artistas como o Salvador, a Luísa Sobral, os Moonspell mais no heavy metal, etc. -, é notável, porque nós temos uma indústria musical frágil, porque o mercado é pequeno e portanto a capacidade de influência e investimento da nossa indústria musical é muito reduzida, e muito daquilo que tem sido conquistado tem-se feito muito à base da carolice, do sacrifício e até de um certo espírito de desenrasca, digamos assim, que os portugueses têm. Esses feitos são, de facto, notáveis – só a Sons em Trânsito já produziu espetáculos em mais de 60 países! Com música portuguesa sempre. Isso é notável e, de facto, nós temos muito esse apelo, necessidade e entusiasmo. Agora as coisas seriam um bocadinho mais fáceis se tivéssemos um bocadinho mais de estratégia todos enquanto país, enquanto nação, e mais algum apoio político.  

MS: Quais são, na sua opinião, as principais dificuldades que um artista tem em se afirmar, nos dias que correm?

VS: Nós estamos a viver num mundo cada vez mais globalizado, porque a forma como nós hoje em dia consumimos música – aliás, todo o entretenimento – mudou bastante. Nós vivemos na era do streaming, e ela faz com que tudo esteja disponível a todo o momento, a toda a hora. Ou seja, eu através do meu telemóvel consigo ouvir qualquer música editada no mundo inteiro através das plataformas de streaming e isso faz com que numa aldeia global por um lado as oportunidades aumentem,  porque se consegue chegar facilmente ao mundo inteiro, a qualquer pessoa – esteja na Coreia do Sul, esteja na Finlândia ou esteja na Bolívia, consegue facilmente ouvir uma canção editada por um artista português -, mas por outro lado também temos que competir no mercado global e no mercado onde existem players com muito mais força e argumentos que nós e ainda com uma capacidade de investimento bastante superior. E nesse momento o que eu acho que mais nos falta é que exista uma entidade, provavelmente aquilo a que os franceses chamam bureau de exportação, para criar uma estratégia uniformizada para exportação da nossa música. E depois falta aquilo que eu ainda há pouco referi – que é a falta de diplomacia cultural. Ou seja, eu enquanto promotor de espetáculos em Portugal sou muitas vezes contactado pelas embaixadas de alguns países – Israel, África do Sul, França, etc. – com novidades, com artistas que estão a lançar os seus novos trabalhos, enfim, com alguma informação sobre artistas oriundos desses países. E nós não temos essa capacidade ao contrário! E isto nem sequer custa dinheiro… é uma coisa que se nós temos uma rede diplomática e com adidos culturais, essa rede diplomática deveria servir para nos facilitar a exportação e a afirmação da nossa música.

MS: Plataformas como o Youtube e Spotify têm, cada vez mais, ganhado terreno nesta era tecnológica e sobretudo durante a pandemia e o período de confinamento. Será que podemos afirmar que estas plataformas – e outras semelhantes – acabaram com a “ditadura” das editoras?

VS: Não, tenho muitas dúvidas que isso aconteça. Ou seja, por um lado acho que neste momento é muito fácil gravar e editar uma música, ao contrário do que acontecia quando eu era miúdo. Neste momento qualquer pessoa consegue no quarto, com um computador, fazer música e depois é muito fácil disponibilizá-la ao mundo inteiro através do digital – e isso, desse ponto de vista, sim. Ou seja, em termos de edição discográfica sim – as editoras já não são imprescindíveis. Mas por outro lado continuam a dominar o mercado na sua influência, na forma como controlam ou manifestam a sua tremenda influência junto das plataformas de streaming e dos mecanismos de divulgação e afirmação da música. E portanto desse ponto de vista ainda são muito importantes! Agora, são decisivas? Não! É mais fácil editar hoje sem uma editora do que era há 20 ou 30 anos? Bastante mais! Mas as editoras continuam a ser fortes, basta vermos que a esmagadora maioria dos grandes artistas internacionais continuam a ter uma editora.  

MS: À semelhança de 2020, em 2021 também não se realizaram diversos eventos – como são exemplo os festivais de verão. Uma grande dor de cabeça não só para os promotores e artistas portugueses como para todos aqueles cujo trabalho está associado ao mundo do espetáculo. O que vê quando olha para o futuro?

VS: Vejo uma recuperação talvez lenta, porque eu acho que há danos e há traumas que foram criados no público e nos investidores que demorarão tempo a passar – eu não sei quanto tempo é que as pessoas vão demorar a sentir-se confortáveis para estar no meio de uma multidão, por exemplo. Acho que isso é uma coisa que vai demorar ainda algum tempo. Mas acredito e até tenho alguma esperança que depois venha uma época muito interessante, como os chamados loucos anos 20 – como aconteceu depois da Primeira Guerra e da pneumónica -, acho que pode acontecer um bocadinho a mesma coisa agora e depois nós termos até uma época de muita riqueza do ponto de vista artístico e intelectual, e termos anos bastante bons à nossa espera – ainda vai é demorar um bocadinho.

/MS

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