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“Mesmo no Canadá, há crianças que vão para a cama com fome”

Merle A. Jacobs

Um relatório da Oxfam, intitulado o “Vírus da Desigualdade” veio revelar que a pandemia, que ainda está a afetar o mundo, veio expor e aumentar as desigualdades. Centenas de milhões de pessoas foram atiradas para a pobreza, prevendo-se aliás que a recuperação económico-financeira dessas pessoas demore mais de uma década. Contudo, os muito ricos estão a prosperar. Os multimilionários voltaram ao pico pré-pandémico e até estão a ver as suas fortunas a crescer cada vez mais.

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Créditos: DR

Perante este quadro, o que podemos esperar ao nível de comportamento da sociedade global, uma vez que, como se sabe, a fome e o desespero são muitas vezes o combustível de revoltas? Foi por aqui que começou a conversa com Merle A. Jacobs, (PhD, Associate Professor, Department of Equity Studies, York University), que olhou para a História da Humanidade para nos lembrar que o que estamos a ver acontecer neste período pandémico já aconteceu noutros tempos, desencadeando fenómenos sociais semelhantes. De tal modo, que a ONU sentiu necessidade de escrever na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais concretamente no seu artigo 25 que “Todas as pessoas têm direito a um nível de vida adequado à saúde e ao bem-estar de si mesmo e de sua família, incluindo alimentação, roupas, moradia, assistência médica e serviços sociais necessários, e o direito à segurança em caso de desemprego, doença, deficiência, viuvez, velhice ou outra falta de sustento em circunstâncias fora de seu controlo.”.

A importância de uma maior equidade socioeconómica

Merle A. Jacobs lembrou ainda que “os grandes objetivos das Nações Unidas demonstram a importância de ‘usar’ os determinantes sociais da saúde para assegurar a equidade de recursos e garantir que a inclusão e o capital social desempenham um papel importante na preservação da saúde. São esses ‘determinantes sociais da saúde’ que fornecem uma orientação sobre o que é ainda possível fazer e o que está a faltar concretizar – tanto ao nível de um país, como à escala global. Os países com grandes disparidades económicas também, geralmente, carecem de programas de redução da pobreza ou de implementação de políticas concretas. Isto, afinal, resulta do fracasso dos seus governos em fazerem o que falam. Sociedades socialmente coesas, que são prósperas, com estados de bem-estar social desenvolvidos, educação e serviços de saúde de alta qualidade, proporcionam aos seus cidadãos melhores oportunidades de vida. A situação económica de todos os Estados ao redor do mundo sofreu mudanças substanciais devido à crise do COVID-19 – o número de pessoas na pobreza aumentou.”

O desaparecimento da classe média

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Merle A. Jacobs. Credit: DR.

É também certo que já há muito se falava do perigo do desaparecimento da organização social da chamada classe média. Seria este “escalão” intermédio da sociedade o seu maior elemento de equilíbrio? A professora da York University recorre de novo à História Universal para nos lembrar que “O declínio da classe média é há muito discutido. Em 2003, tivemos a bolsa de valores em declínio – onde as ações dos EUA eram propriedade dos mais ricos – e reduziram-se os níveis de consumo da classe média. Desde o início dos anos 1980 até ao início dos anos 2000, a globalização, caracterizada pelo movimento do emprego offshore para nações de salários mais baixos, deixou todos os membros da classe média sem poder – corroeu as oportunidades de emprego da classe média.” Merle A. Jacobs defendeu ainda que “temos uma classe média porque foi isso que o governo fez algumas pessoas pensarem – que pertencem a essa ‘classe’. Na verdade, pertencemos à classe trabalhadora, pois muitos de nós trabalhamos para alguém e não somos donos dos negócios para os quais trabalhamos. A ‘situação da classe média’ e do seu desaparecimento sempre foram debatidos e mencionados por investigadores desde os anos 1980.”

A ostentação da riqueza

É neste enquadramento que, de forma algo contraditória (ou talvez não…), temos vindo a assistir nos últimos tempos a uma certa necessidade de ostentação da riqueza, por parte de quem é efetivamente muito rico. Basta falarmos das recentes viagens ao espaço. Que impacto estas notícias podem ter numa sociedade global a lutar todos os dias pela sobrevivência e onde, segundo dados da ONU, uma em cada 10 pessoas vai com fome para a cama? A esta pergunta Jacobs respondeu-nos assim: “Quem luta contra a insegurança não tem tempo nem força para reagir ou lutar pelos seus direitos. Mesmo no Canadá, há crianças que vão para a cama com fome e famílias que vivem como o que é definido como ‘sociedade global pobre’. Os investigadores têm-se mostrado particularmente interessados nas causas da recente expansão dos programas de bem-estar social nas economias em desenvolvimento e emergentes. Existe uma classe média emergente na China e noutros países.”

A fome e as suas consequências

“Sim, há alertas globais de emergência alimentar. A pandemia ameaça milhões de crianças e adolescentes e suas famílias que atualmente vivem ou correm o risco de desenvolver insegurança alimentar. A insegurança alimentar tem implicações cognitivas e comportamentais para pais e filhos. Os números de pessoas com fome estão em ascensão devido às mudanças climáticas e conflitos violentos. A desigualdade está sistematicamente associada a resultados negativos, tanto sociais quanto económicos – os governos podem:

  • tributar os ricos sobre os ganhos acumulados;
  • cobrar um imposto sobre a riqueza sobre indivíduos com património líquido elevado;
  • cobrar um imposto sobre transações financeiras;
  • fazer com que o 1% que tem rendimentos anormalmente altos, pague um imposto mais elevado.

Há quem exija uma redistribuição da riqueza por parte daqueles que são muito ricos e pagam pouco ou nenhum imposto.

Os pobres pagam com a vida, a insegurança alimentar e a falta de residência. A população sem-abrigo é um marcador de como as pessoas são deixadas de fora da sociedade.”

O aumento do custo de vida

Olhando de forma particular para o Canadá e em especial para a GTA, o aumento do custo de vida tem sido muito difícil de suportar para muitas famílias que antes viviam desafogadamente. Também aqui a chamada classe média parece estar a desaparecer. Merle A. Jacobs diz-nos como olha para esta realidade:

“O Governo do Canadá tem ajudado as famílias durante a pandemia de COVID-19. Em termos de custo de vida – como sociedade, precisamos perguntar ao governo por que isso está a acontecer.

Kochlar, R. afirma, de forma clara, que ‘a classe média tem desempenhado um papel especial no pensamento económico desde há séculos. Surgiu da burguesia no final do século XIV, um grupo que, embora ridicularizado por alguns pelo seu materialismo económico forneceu o ímpeto para a expansão de uma economia de mercado capitalista e do comércio entre os estados-nação. Desde então, a classe média é considerada a fonte de empreendedorismo e inovação – as pequenas empresas que fazem a economia moderna prosperar. Os valores da classe média também enfatizam a educação, o trabalho árduo e a economia. Assim, a classe média é a fonte de todos os inputs necessários para o crescimento numa economia neoclássica – novas ideias, acumulação de capital físico e acumulação de capital humano’.

Com esta declaração em mente, pergunto – temos pequenas empresas no Canadá? A classe média preocupa-se com a economia ou com os valores que regem a forma como vivem?”

A pergunta fica no ar, mas há mais questões cuja resposta é difícil. Não é simples, nem mesmo para quem se dedica ao estudo da sociedade e de como ela se comporta em determinados ambientes socioeconómicos, prever se, por exemplo no Canadá, será possível reencontrar um certo equilíbrio financeiro perdido pelas famílias.

O futuro? É isso mesmo – uma incógnita

“A sociedade civil é altamente diversificada, com muitas organizações diferentes, que vão desde pequenas associações locais a grandes ONGs internacionais – como o Greenpeace. Temos prestadores de serviços sociais e agências de ajuda humanitária ou fundações filantrópicas que movimentam muitos milhões de dólares. É a auto-organização dos cidadãos que definiram os seus interesses – procurando ter voz e influência em todos os níveis de governo e até organizações mundiais.

Aqui no Canadá, como já disse, o governo tem garantido serviços sociais e disponibilizado programas de saúde para apoiar a sociedade. Essas análises relativamente ao futuro – sobre se é possível e como garantir o equilíbrio e uma maior equidade – ainda estão em desenvolvimento.

O papel da sociedade? Não tenho certeza se temos estruturas sociais, mas temos uma sociedade civil que está envolvida e que se defende.” remata Merle A. Jacobs.

Catarina Balça/MS

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