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“Maioritariamente as pessoas não têm filhos ou têm cada vez menos, não por que não os possam ter (infertilidade), mas sim por vontade”

- Prof. Maria João Valente Rosa

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Em Portugal, tal como aliás, em muitos países desenvolvidos, a população idosa está em franco crescimento, muito graças ao desenvolvimento da medicina e outros fatores, os bebés são cada vez menos, o que fica evidente na baixíssima taxa de natalidade, juntando ainda a mais recente vaga de emigração que retirou do território nacional muitos dos jovens… enfim, a situação demográfica é já considerada preocupante. Para nos ajudar a entender o que está realmente em causa recorremos à Demógrafa e Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa| Investigadora IPRI-Nova, Maria João Valente Rosa. Com a sua sabedoria, fruto de muito estudo e investigação, conseguimos um retrato muito fiel do que é hoje a realidade demográfica de Portugal e resto do mundo e o impacto que a situação terá se não forem tomadas medidas. 

Milénio Stadium: Há muito que se fala da importância de se contrariar o declínio da taxa de natalidade, que se regista essencialmente nos países ocidentais. O que está a acontecer nesses países que pode justificar essa realidade (baixa taxa de natalidade)?

Maria joão Valente Rosa. DR.

Maria João Valente Rosa: Os níveis de fecundidade nos países ocidentais são, comparativamente aos valores observados no passado, não só baixos, como muito inferiores ao necessário para que se encontre garantida a substituição de gerações, ou seja a uma média de 2,1 filhos por mulher.

Há uma razão inicial para o que está a acontecer: o desenvolvimento social. Tal desenvolvimento pode ser traduzido por uma extensa lista de progressos, como: a diminuição da mortalidade infantil, os avanços do conhecimento médico e científico, as melhores condições de acesso à saúde, o aumento do nível de instrução; a urbanização e a terciarização da economia, a emancipação profissional da mulher. É por estar associado ao desenvolvimento social que, em termos mundiais, são os países mais desenvolvidos que revelam níveis de fecundidade mais baixos. Nestas regiões a criança perdeu ainda o seu valor económico, nomeadamente de segurança na velhice ou de ser mais um ‘braço para trabalhar’, e passou a ter um valor fundamentalmente emocional. Ter um filho significa investir num projeto futuro que se espera o melhor sucedido possível e que é muito pensado e adiado até estarem reunidas as melhores condições para o ter. O investimento é, assim, cada vez mais orientado para proporcionar uma maior qualidade de vida a quem nasce, restringindo-se a quantidade de filhos que se tem. Assim, a ambição de ter descendências numerosas faz parte de um número cada vez mais reduzido e casais.

Existem ainda razões mais circunstanciais que também pesam nessa decisão em que se deseja o melhor quando se pensa ter um filho, como: risco de desemprego ou instabilidade do emprego; elevados custos da habitação; falhas no apoio à 1ª infância; dificuldade de conciliar tempos de vida profissional e familiar, em especial no caso das mulheres. Ainda, o prolongamento da escolaridade e a garantia de condições de vida adequadas levam muitos casais a adiar o nascimento dos filhos, a começar pelo primeiro. Como tal, e dado que o período fértil da mulher é limitado (em termos estatísticos corresponde aos 15-49 anos), esse excessivo adiar do projeto de maternidade impede que muitas mulheres transitem para o 2º ou 3º filhos, o que também se reflete em um menor número de nascimentos.

Acresce, por fim, que atualmente há um outro fator que assume um lugar cada vez mais importante enquanto dissuasor da vontade de ter filhos: as incertezas em relação ao futuro e os medos associados. Dou como exemplos, os receios com as alterações climáticas (o tal medo do ’apocalipse climático’), o excesso de população mundial relacionado com a ideia de insustentabilidade do planeta, a consideração de uma sobrecarga financeira e social que as gerações futuras nascidas hoje terão de suportar, ou a instabilidade mundial e as guerras. 

MS: Por outro lado, a esperança média de vida nesses países está cada vez mais elevada. Que consequências estes fatores têm na gestão de um país?

MJVR: O aumento da longevidade média da população é uma boa notícia. Quem não gosta de saber que pode esperar viver mais anos que os seus pais ou avós. 

Associado ao facto de existirem cada vez mais pessoas a chegarem às idades superiores e de aí poderem esperar viver mais tempo está o aumento das pessoas nas idades superiores.

Apesar de sabermos que envelhecer não é uma doença, é um facto que com o avanço na idade aumenta a prevalência de certas patologias, designadamente doenças crónicas e degenerativas. Como tal, o aumento das pessoas nas idades superiores tem impacto na capacidade de resposta pública e social à procura de cuidados de saúde, assim como sobre a maior necessidade de cuidados de longa duração. Por outro lado, o facto de grande parte das pessoas em idades superiores se encontrar desvinculada do mercado de trabalho, acentua vulnerabilidades financeiras e a dependência de transferências sociais das pessoas nas idades superiores. E como esse grupo etário aumenta de importância por comparação à população em idade ativa, aumenta o esforço financeiro de proteção social dos mais velhos que recai sobre os contribuintes. Também, as situações de solidão não desejada das pessoas nas idades superiores, resultante de desenraizamento do mercado de trabalho, viuvez ou de outras circunstâncias é uma evolução preocupante, com impactos vários nomeadamente no que respeita à saúde mental, que tende a ganhar mais evidência com o aumento da população idosa e que obriga a respostas particulares, quer do foro privado como público.

Mas as consequências de se contar com maiores proporções de pessoas nas idades superiores não têm de ser unicamente negativas, se as populações souberem aproveitar devidamente o potencial que representam (ou podem representar) os mais velhos, nomeadamente em termos do seu contributo, não só para a família (como é o caso do eventual apoio aos netos), como para a sociedade. 

Estamos perante novos tempos, com pessoas de perfil distinto ao dos seus ascendentes. Hoje alguém com 65 ou 70 anos em nada se compara com alguém com essa idade há 2 ou 3 décadas, tanto em termos de características físicas, como de competências e de capacidades. Como tal importa inovar no nosso modo de olhar para o valor social das pessoas, deixando de as considerar ‘dispensáveis’ em termos sociais e económicos quando atingem uma certa idade cronológica, como atualmente acontece. 

Uma outra vertente a explorar e a potenciar são as relações intergeracionais. Nunca tivemos tantas gerações em presença simultânea como hoje. Assim, a boa gestão da evolução da estrutura demográfica passa por aproximar gerações (em torno de projetos comuns como, por exemplo, a literacia financeira ou digital) e não dividi-las em segmentos diferenciados (formação/trabalho/reforma), como hoje também acontece.

Em suma, o grande desafio consiste em conseguir que o aumento em quantidade de anos de vida não signifique mais anos para se ser velho, mas sim mais anos para viver. Trata-se de uma nova forma de encarar a vida e de gerir a organização do ciclo de vida por forma a que o benefício de se viver mais anos se faça acompanhar de anos vividos com melhor qualidade. Para o efeito importa apostar, em todas as idades, em comportamentos de prevenção de problemas de saúde, em ações que promovam relações intergeracionais e de redes de partilha, na formação ao longo da vida, e na identificação de propósitos de existência (i.e. em razões para nos levantarmos todos os dias de manhã).

MS: Como se articula esta questão demográfica, com a gestão económica de um país, quando a população não ativa é cada vez maior, e que soluções podem e devem ser adotadas para enfrentar este problema?

MJVR: Na realidade, uma das formas de discriminação no mercado de trabalho é a idade. Ser-se muito novo ou mais velho. Ora, o mercado deve ser mais inclusivo pois a população em idade ativa tende, pela via demográfica da redução de nascimentos, a diminuir e precisa de contributo de todos. O que atualmente acontece é o incentivo para as pessoas nas idades superiores saírem do mercado de trabalho independentemente da sua vontade. Imagina-se, com tal, que se está a promover o emprego dos mais jovens. Mas não é verdade! E essas saídas compulsórias, em função da idade cronológica, representam ainda um significativo desperdício de capital humano, com enormes custos sociais e económicos.

As propostas que tenho apresentado de ações possíveis são várias. Seguem-se, apenas a título ilustrativo, algumas: 

  • remover, dos quadros legislativos ou de orientação estratégica, as referências à idade cronológica como critério de acesso ou de restrição a um direito de valorização/desvalorização do papel social de alguém;
  • sensibilizar, através de campanhas dirigidas a todas as idades, para os estereótipos associados ao envelhecimento e à discriminação etária;
  • premiar e distinguir experiências bem-sucedidas de organizações, traduzidas, por exemplo:
  • na redução da intensidade do trabalho nas idades centrais;
  • no estímulo a relações intergeracionais através de mentorias no local de trabalho;
  • no incentivo e apoio à formação para alargamento de saberes, relativos à atividade profissional exercida e a outras áreas de interesse;
  • apoiar a execução de projetos-piloto habitacionais, promotores de co-habitação intergeracional;
  • promover ações de formação, em espaços partilhados por várias gerações, sobre saberes transversais;
  • coordenar ações de formação ao longo da vida para atualização de saberes ou aquisição de novos saberes;
  • criar serviços de reorientação de planos profissionais e de vida para pessoas adultas (essencialmente para aqueles que se encontram a ‘meio’ das suas vidas);
  • apoiar o desenvolvimento de novos projetos profissionais, através de bolsas de estudo para todas as idades adultas e todos os níveis de formação;
  • outorgar uma prestação social especial para as pessoas que interrompam a sua atividade laboral para fazer formação, para a atualização de saberes ou para a aquisição de novos saberes;
  • incentivar a criação de plataformas digitais de troca de saberes, fomentando o interesse pela formação e pela partilha de experiências e de competências entre as várias gerações;
  • garantir a representação intergeracional em conselhos consultivos, comissões ou grupos de trabalho especializados;
  • apostar nas T.I.C. e nos meios digitais ao serviço da autonomia e da independência das pessoas em idade adulta, contribuindo para uma menor pressão sobre as deslocações em nome de alternativas de práticas de vida mais ‘sustentáveis’ em termos ecológicos/ambientais.

MS: A imigração é fundamental para contrariar este défice demográfico?

MJVR: Naturalmente que sim, caso falemos de imigração particularmente centrada nas idades centrais, como o é a de tipo laboral. 

Numa situação em que os saldos naturais (i.e., a diferença entre o número de nascimentos e o número de óbitos) tendem para negativo (menos nascimentos do que óbitos), em que a população está a envelhecer de forma intensa e em que o número de pessoas em idade ativa tenderá a diminuir, como é a que se verifica em larga parte dos países desenvolvidos, o papel da imigração é decisivo para contrabalançar o decréscimo populacional e para atenuar a intensidade do de envelhecimento demográfico, nomeadamente por contribuir com nascimentos nesses países de acolhimento.

MS: Ter ou não ter filhos – a decisão é influenciada por razoes económicas (sustentabilidade da família) e/ou culturais/étnicas?

MJVR: Sabemos que as questões culturais e económicas podem influenciar as decisões, mas não são as únicas ou atuam isoladamente. A decisão de ter ou não ter filhos remete para inúmeros fatores que se entrelaçam de forma variada que incluem, para além de razões económicas e/ou culturais, fatores sociais, de circunstância ou associados ao modo como o futuro é prospectivado, como o referi na minha 1ª resposta.

MS: Há algum estudo que indique que há problemas de fertilidade, provocados por questões ambientais ou outras, ou é mesmo uma questão de ponderação familiar?

MJVR: Os estilos de vida e comportamentos e hábitos afetam naturalmente a fertilidade das populações, ou seja a sua capacidade de ter filhos. Contudo, maioritariamente as pessoas não têm filhos ou têm cada vez menos, não por que não os possam ter (infertilidade), mas sim por vontade, ou seja por não quererem tê-los.

MB/MS

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