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Livre para se ser o que se quiser

LIVRE PARA SER QUEM QUISER - milenio stadium (1)

 

Lucas Silveira é um luso-canadiano com uma história de vida absolutamente fascinante. Um homem cujo segundo nome poderia ser “corajoso”, vincado por muitos obstáculos, mas com um discernimento exemplar. Viveu durante seis anos da sua infância no Pico, ilha dos Açores, em Portugal, rodeado por pais e irmãos que sempre lhe deram nada a não ser amor e compreensão, mas infelizmente Lucas, outrora Lilia, passou por vários caminhos turbulentos com olhares que gritavam preconceito e julgamento. Aos oito anos (por favor leiam novamente: oito anos de idade), Lucas tentou pela primeira vez tirar a própria vida – por não conseguir perceber como iria solucionar um “problema” que ele não reconhecia em mais ninguém à sua volta, Lucas acreditava que o “problema” seria ele. Não era, nunca foi. Lucas apenas nasceu mulher, mas sempre se sentiu homem. Apenas isso. Devia ser tão simples quanto isso, mas infelizmente “simples” não é bem a melhor definição para a sua trajetória.

Lucas Silveira, visitou agora muito recentemente a terra onde nasceu e, pelo que consegui ler das suas publicações públicas nas redes sociais, reencontrou pessoas agora na casa dos 70 anos, que sempre o conheceram como Lilia, que em momento algum o trataram por “ela”. Há aqui uma mensagem muito bonita e que nos deixa alguma esperança – aceitarmos as pessoas por aquilo que cada um decide ser.
Nesta edição do jornal Milénio Stadium tivemos a oportunidade de saber um pouco mais sobre Lucas e aprender muito mais sobre humanidade.

Lucas Silveira 2 - milenio stadiumMilénio Stadium: Desde muito cedo te apercebeste que não tinhas nascido no corpo certo. Como foi viver o período de autodescoberta?
Lucas Silveira: Eu nunca diria que não nasci no corpo certo. Essa não seria a minha narrativa como pessoa trans, embora seja para alguns. Creio ter nascido no corpo certo e que sou uma pessoa transexual. Todas as pessoas trans são diferentes e todas têm a sua própria narrativa no que diz respeito a esta experiência. Muitas pessoas foram ensinadas a dizer isso para poderem ter acesso aos cuidados de saúde adequados que as ajudam a transitar para aquilo que sentem como o seu eu autêntico, porque quando não o fazem, e devido à visão predominante daqueles que são heterossexuais cisgéneros, que defendem essencialmente que o género binário é isto ou aquilo, muitas pessoas no passado temeram não receber a ajuda de que necessitam, pelo que acabam por se desviar para essa narrativa.
Ter nascido mulher e não sentir que não era essa a minha identidade não é algo tão direto como “nasci no corpo errado”. Para mim, era um sentimento de que eu não era quem deveria ser e esse sentimento era que eu era um rapaz – a minha memória mais antiga de me sentir assim foi quando tinha 4 anos de idade. Uma das minhas tias disse que se lembrava de mim a dizer que eu era um rapaz logo aos 2 anos, o que, quando penso nisso, é um pouco espantoso que uma criança tão jovem pudesse ter uma autoconsciência tão profunda em torno do seu sexo, mas eu tive e muitos de nós temos. Eu estava a viver no Pico, nos Açores, quando tive esta autodescoberta. Foi nos anos 70 e a consciência de que havia pessoas transexuais nem sequer existia. Assim, à medida que fui amadurecendo e sabendo que era um rapaz, mas não tendo nada a que me referir, sem conhecimento de casos iguais ao meu, cresci a acreditar que devia ter algum tipo de doença mental. Passei a maior parte da minha vida adulta, antes de fazer a transição, a acreditar que precisava de “consertar-me” a mim próprio e guardei o segredo dentro de mim durante todos aqueles anos.

Depois de viver no centro de Toronto durante alguns anos por volta dos meus 20 e poucos anos, finalmente comecei a ouvir a palavra transgénero e conheci pessoas que eram e após anos de depressão severa e ideação suicida, tornou-se muito claro para mim qual era o problema e identifiquei-me como trans, começando a minha transição aos 32 anos de idade. Só comecei os tratamentos com hormonas de testosterona aos 37 anos porque sou cantora e foi-me dito quando me assumi trans que isso iria destruir a minha voz enquanto cantora. Quando pensava já não suportar mais, tive a sorte de encontrar outros homens trans que tinham feito a transição vocal com sucesso, que me ensinaram a fazê-lo também e assim comecei a minha viagem hormonal.

MS: Vivia-se num ambiente relativamente conservador na altura. Sentiste algum tipo de discriminação ou, pelo contrário, sentiste-te apoiado?
LS: Eu fui um dos sortudos quando se tratou de família, porque nenhum deles alguma vez foi cruel para comigo. A minha mãe e o meu pai eram incríveis, tal como os meus irmãos. Foi um processo, com certeza, mas sendo uma pessoa de ascendência portuguesa, ser aceite da forma como fui na geração em que estava, foi excecional. Com os meus amigos foi o mesmo. Muito acolhedores, com talvez alguns comentários ignorantes aqui e ali.
O lugar em que senti mais discriminação foi na indústria musical e, estranhamente, a própria comunidade queer. Quando me identifiquei como trans, um gay disse-me uma vez que não queria que pessoas como eu (pessoas transexuais) tirassem partido do seu movimento e que pessoas como eu estavam mentalmente doentes. Há gays e lésbicas que não gostam que se associe a comunidade trans com a comunidade gay e lésbica, porque pensam que essa associação está a infringir o movimento deles. É bastante triste. Mas ainda mais triste, foi quando fui realmente discriminado dentro da comunidade trans antes de ter começado com as hormonas. Foi-me dito que eu não era uma “boa” representação da comunidade trans e que não podia ser um homem “real”, porque tinha escolhido a minha voz de cantor em vez da minha transição hormonal. Foi alarmante e extremamente dececionante. Mas aprendi que só porque uma comunidade marginalizada se autodenomina “comunidade”, isso só acontece se te comportares da forma que eles querem. Caso contrário, és banido. Assim, para mim, a minha comunidade continua a ser simplesmente pessoas que me veem, me aceitam, e me amam, exatamente por quem eu digo que sou.

MS: Começaste por te assumir como lésbica. Como descobriste que, de facto, a tua identidade estava mais de acordo com os transexuais?
LS: Eu assumi-me como lésbica porque não sentia que tivesse outra escolha. Parecia a versão mais segura de quem eu era. Já sabia que era um homem, mas não havia maneira de o ser, de facto, naquela altura e pensei que se dissesse a alguém, que seria colocado numa instituição de saúde mental. E, acreditem, aconteceu. Continua a acontecer. Não foi tanto o facto de descobrir que a minha identidade estava mais de acordo com o facto de ser transexual, mas sim que finalmente me senti suficientemente seguro para me assumir, quando o fiz, como transexual.

MS: Como foi o processo de mudança de género – sabemos que é longo, mas, ao mesmo tempo, foi entusiasmante para ti?
LS: Esta é sempre uma pergunta que tenho de tirar algum tempo primeiro, para usar o meu discurso como um momento educacional. O termo “mudança de género” significa muitas coisas diferentes para muitas pessoas trans diferentes. Para algumas pessoas, pode ser que iniciem a terapia hormonal e não façam mais nada. Para outras, pode significar terapia hormonal e algumas cirurgias. Para outros, pode significar dizer “identifico-me como transexual” e não tomo hormonas ou faço qualquer cirurgia ou faço apenas uma. Portanto, quando se trata de “sabemos que é longo”, essa é na verdade uma ideia muito corrente e incorreta do que é a mudança de género.
O meu processo foi assumir-me como trans aos 32 anos, fazer cirurgias na parte superior do tronco, e a não fazer quaisquer hormonas. Para então, aos 37 anos de idade, iniciar a testosterona. Mais tarde, há apenas cerca de quatro anos, optei por uma versão de cirurgia na parte de baixo chamada metoidioplastia simples, sobre a qual vou permitir que as pessoas façam a sua própria investigação. Mas será que me sinto como se estivesse “terminada a transição”? Não. Porque não acredito que a transição tenha um fim, tal como não acredito que o crescimento humano tenha um fim. Para mim, é uma jornada contínua que não vejo ter nada a ver realmente com a identidade de género. O facto de me ter assumido como trans e o meu avanço no sentido de me sentir mais autêntico no meu corpo, não foi aquilo a que chamo uma transição no sentido do género em si, mas na realidade um crescimento enquanto ser humano. A identidade, para mim, em todos os sentidos, é um processo contínuo. Estamos sempre a tentar sentir-nos o mais próximo possível de quem nos apetece ser. Quer sejamos cisgénero ou transgénero. Acontece que parte do meu crescimento enquanto ser humano, foi em parte, centrado no género.
Quanto a ser entusiasmante, sim, foi. Mas foi também extremamente assustador e até horripilante, por vezes, devido aos riscos sociais. Mas nunca me arrependi por um único momento. Isto é quem eu sou, e espero tornar-me naquilo em que me estou a tornar com menos medo.

MS: Recentemente saíram os resultados do Censo que revelaram que 1 em cada 300 pessoas com mais de 15 anos de idade identifica-se como não-binário ou transgénero. Será que estes números o surpreendem?
LS: De modo algum. O género é uma construção. E quando as pessoas se aperceberem que é preciso permitir que as pessoas sejam quem quer que sejam, construir a sua própria narrativa de género, aceitá-la, e seguir em frente, deixaremos de nos preocupar tanto com isso. Identifico-me no binário, como homem. Mas isso não significa de forma alguma que eu pense que alguém que se identifique como não binário ou como fluido de género seja bizarro. Penso que é realmente bonito. Tal como as pessoas trans não binárias. O mundo é um lugar tão melhor quando apenas permitimos que as pessoas sejam quem dizem ser.

MS: Achas que o Canadá é um país inclusivo onde todos se podem afirmar como realmente são?
LS: Eu penso que o Canadá é um dos países mais inclusivos, com certeza. Mas não em todas as províncias, e ainda precisamos de fazer muito trabalho. Mas se alguém me perguntasse onde penso ser o lugar mais seguro para se viver como pessoa trans? Eu diria 100%, sem vacilar, que é o Canadá. E não tenho a certeza quanto a outras cidades, mas penso que Toronto é uma das melhores cidades para se viver como uma pessoa trans. Mas, mais uma vez, ainda tem falhas. Especialmente quando se trata da proteção das mulheres de cor que se apresentam como pessoas trans, especialmente mulheres trans negras. Sou um homem cisgénero branco, leia-se: pessoa trans. Movo-me pelo mundo com muito privilégio que muitas outras pessoas trans não têm porque as pessoas, que não me conhecem, não me leem como trans. Pensam apenas que sou simplesmente um português tatuado. E isso é valioso no mundo, no que diz respeito à segurança.
Assim, embora eu pense que o Canadá está definitivamente à frente na aceitação das pessoas trans, penso que se começarmos a acreditar que isto é assim e pronto, é ser ilusório. Por exemplo, estou atualmente num processo de discriminação dos direitos humanos na habitação com o Landlord Tenant Board e com o Ontario Human Rights Commission porque fui discriminado por um antigo senhorio, que usou a minha identidade de género como meio de discriminação. Portanto, mesmo com o meu privilégio, temos um longo caminho a percorrer.

Catarina Balça/MS

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