Imigração não é colonização

A imigração e os impactos nos países de origem e de acolhimento. Nesta edição do Milénio, tentamos perceber o que se está a passar neste mundo cada vez mais globalizado, onde o fenómeno migratório se tem intensificado e gerado desafios relacionados com a forma como acontece, ou não, a integração dos imigrantes, que tem levado a um evidente crescimento da xenofobia, alimentada por tensões identitárias e manipulação externa.
Fernando Diogo é sociólogo, doutorado em Ciências Sociais, especialidade de Sociologia do Desenvolvimento. É professor associado com agregação da Universidade dos Açores e investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais. É diretor do mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e co-coordenador da secção de Pobreza, Exclusão Social e Políticas Sociais da Associação Portuguesa de Sociologia. Colabora com a Rede Europeia Anti‑Pobreza e foi coautor da Estratégia Regional de Luta Contra a Pobreza dos Açores. É membro do Conselho Económico e Social desta Região. É também o Diretor Executivo do Observatório da Juventude. Nesta entrevista, Fernando Diogo analisa a imigração como um fenómeno complexo, rejeitando visões simplistas e a ideia de uma nova colonização.
Milénio Stadium: A imigração contemporânea é, por vezes, percecionada como uma nova forma de colonização cultural ou económica. Como interpreta esta visão? Há algum fundamento ou trata-se sobretudo de uma construção baseada no medo do “outro”?

Fernando Diogo: Quando falamos em fenómenos humanos tendemos a não ter em conta duas questões que dificultam uma leitura mais correta da realidade, por um lado, são fenómenos complexos, que dificilmente se podem reduzir a coisas claras e simples do tipo branco ou preto, há sempre muitas coisas em jogo e, por vezes, temos dificuldade em perceber todas, creio ser exatamente este o caso. Por outro lado, e com especial aplicação ao caso concreto, as coisas tendem a misturar-se. A presença dos imigrantes nas sociedades de acolhimento tem consequências em vários níveis, desde logo nas sociedades de onde vêm, dado que, a nível individual, há todo um sofrimento das famílias pela distância, e a nível coletivo há um empobrecimento do país emissor, dado que quem parte são os mais jovens e dinâmicos membros dessa sociedade. Nas pessoas que emigram há também um processo de aculturação à sociedade de acolhimento. Isto é, quando se chega a uma nova sociedade é preciso aprender língua (a maior parte das vezes), costumes, regras legais, e toda uma cultura que é estranha aos novos imigrantes. Esse processo de aculturação varia com a proximidade cultural ao país de acolhimento e com o que podemos designar como boa vontade cultural, isto é, a predisposição dos indivíduos a assimilarem-se à cultura e regras da sociedade de acolhimento. Esta boa vontade cultural vai variar de indivíduo para indivíduo, mas também varia com a cultura do imigrante, é mais fácil quando na sua cultura se vê a cultura do país de acolhimento como algo desejável. Mas também há consequências nas sociedades de acolhimento, estas podem ser mais ou menos hostis aos imigrantes, e isso tem consequências no sucesso da sua integração e assimilação. É, também, preciso não esquecer o efeito do peso dos números. Um pequeno número de imigrantes tem o efeito de uma gota de tinta em um balde de leite, mas, à medida que aumente esse número, a integração sem perturbações deixa de ser possível. Creio que, considerando estes fatores, e para a atualidade, o que assistimos é a uma transformação profunda das sociedades de acolhimento, em função da distância cultural de alguns imigrantes e do seu elevado número. E isto está a causar desafios à integração e assimilação destes imigrantes e até à coesão social destas sociedades. É claro que isso está a ter consequências, e é um dos principais fatores para a ascensão da extrema direita, a par da perceção da corrupção e do grande trabalho de destabilização das sociedades ocidentais promovido ativamente pela Rússia, através da manipulação política massiva dos eleitores nas redes sociais, com grande sucesso.
MS: Na sua perspetiva, os imigrantes devem adaptar-se completamente aos valores e costumes do país de acolhimento ou é possível – e desejável – uma convivência entre culturas mantendo identidades distintas?
FD: Este debate é antigo e não tem grande solução. Historicamente a uniformidade cultural sempre foi mais um desejo que uma realidade e as lutas políticas com motivações identitárias têm feito correr, literalmente, rios de sangue ao longo da história. E aqui estou a entender as guerras religiosas como motivadas pelas questões identitárias. Portanto, é um terreno muito pantanoso e quando olhamos para trás na história não vemos nada de substantivamente distinto. Há longos períodos históricos de relativa acalmia e outros de intensa disputa identitária. No momento atual, podemos contar com toda a conceção político-filosófica que nos veio da revolução francesa para mitigar os efeitos mais perniciosos das guerras identitárias (culturais), mas não podemos perder de vista que estes instrumentos já existiam na Alemanha e no Japão dos anos 30 do século passado, e foi o que se viu. Portanto, esta é uma navegação à vista, que tem que se ir fazendo, idealmente talvez fosse de promover a assimilação cultural, mas o custo de isso correr mal é potencialmente enorme, pelo que talvez não seja assim tão boa ideia. Portanto, sublinho são mais as incertezas que as certas. Naveguemos à vista.
MS: Como avalia atualmente o posicionamento dos imigrantes em Portugal (ou na Europa): sentem-se integrados, tolerados ou marginalizados? E como é que isso influencia as suas atitudes em relação à sociedade de acolhimento?
FD: Creio haver aqui uma enorme variabilidade, quer de país para país, que tem a ver com as características das sociedades de acolhimento, com as características dos imigrantes, e ainda com o seu peso no total da população do país de acolhimento. Sublinho que os imigrantes não são todos iguais, há, até, uma categoria de imigrantes, a que chamamos expatriados, que são privilegiados nas sociedades de acolhimento… outro exemplo, a segunda maior comunidade imigrante em Portugal, a seguir ao Brasil, é do Reino Unido, e a Itália aparece em quarto lugar, alguém pensa em ingleses ou italianos quando pensa em imigração em Portugal? Isso tem a ver com as profundas diferenças entre os tipos de imigrantes…
MS: Quais são, na sua opinião, os maiores obstáculos à articulação pacífica entre culturas e religiões diferentes numa mesma sociedade? E que papel pode ter a educação ou a política na construção de pontes interculturais?
FD: O maior obstáculo é a natureza humana, nomeadamente a propensão à desconfiança do outro, do estranho, algo que condensamos no termo xenofobia. Mas isso é possível de ser controlado e contrariado pela cultura, a sobreposição da cultura a impulsos individuais é uma coisa que acontece em nós a cada segundo, no nosso caso, como já disse, temos a sorte de ter as ferramentas político-filosóficas da revolução francesa. Por outro lado, é claramente necessária a existência de políticas ativas para promover a integração e até a assimilação dos imigrantes nos países de acolhimento, para que eles se sintam parte e sejam parte, isto sem esquecer os seus filhos e netos já naturais dos países de acolhimento, as políticas educativas são um exemplo da maior relevância. A concentração de imigrantes, e seus descendentes, em ghettos constituídos com base na identidade cultural parece-me muito contraproducente, basta pensar em todo o sofrimento associado às judiarias na europa medieval. E o que está em causa está longe de se resumir a aspetos culturais, com a sua vertente identitária, há, claramente uma dimensão de desigualdades sociais, de classe social, que é ainda mais importante do que as diferenças culturais/identitárias: os imigrantes vêm ocupar as posições laborais que os nativos não querem, mal pagas, penosas e, muitas vezes, precárias, isso leva-os para as classes mais baixas, e esta má posição de classe vem acumular com as distinções identitárias reforçando-as. Integrar e assimilar os imigrantes é garantir que haja mobilidade social ascendente para os seus filhos e netos, de forma a minimizar uma excessiva divisão cultural e de classe social.
MS: O aumento da xenofobia e do racismo em vários países europeus e na América do Norte é um fenómeno recente ou está apenas a tornar-se mais visível? Que fatores estão na origem deste crescimento?
FD: A xenofobia é, em minha opinião, uma variante da natureza humana e o racismo é apenas uma manifestação moderna da xenofobia. Isto não impede que nos últimos decénios este fenómeno esteja a aumentar nos países referidos, e isso está, em meu entender, muito relacionado com o aumento muito significativo do número de imigrantes, sobretudo dos provenientes de áreas com religião, cultural e/ou cor de pele distinta. Quase de certeza que existem outros fatores que ajudam a explicar esta transformação no sentido de uma maior xenofobia, mas como não sou especialista não consigo precisar. Agora, parece-me evidente que muita gente se sente muito desconfortável e ameaçada quando sai a rua e se vê rodeado por pessoas vestidas de forma diferente, a falar outras línguas e, eventualmente, com cores de pele distintas, as pessoas sentem-se estrangeiras na sua própria terra, sentem-se ameaçadas, por irracional que isso seja, e isso tem consequências na insatisfação e na forma como esta se expressa, na mesa de voto, nomeadamente. A Rússia tem conseguido capitalizar estes sentimentos para dar força à extrema direita, não porque concorda com a extrema direita – em parte até concorda – mas para destabilizar as sociedades ocidentais, ocupá-las com os seus próprios problemas e enfraquecê-las, para poder manipular o mundo em função dos seus interesses. Este papel da Rússia é central e enorme, e eu espanto-me com a dificuldade das pessoas em perceberem que a Rússia nos manipula a seu belo prazer, e espanta-me a dificuldades das elites ocidentais em lidarem com o problema.
MS: Que estratégias ou políticas públicas considera essenciais para promover uma integração que seja equilibrada, respeitadora da diversidade e benéfica tanto para os imigrantes como para a sociedade de acolhimento?
FD: Esta é a pergunta do milhão de euros, e eu não tenho resposta para ela. No entanto, alerto para que existe uma tensão tripartida entre diversidade, integração e assimilação que precisa de ser gerida politicamente. Além disso, e muito importante, é preciso apoiar as sociedades emissoras, nos seus processos de desenvolvimento, para que as pessoas não precisem de emigrar. Estando nós numa sociedade de onde tanta gente tem emigrado, e continua a emigrar, sabemos bem o custo de sofrimento individual, de saudade, que a emigração causa, a angústia com o desconhecido do país de acolhimento, a exploração laboral associada à vulnerabilidade dos imigrantes nos países de acolhimento, o dinamismo económico e social que não acontece por falta dos jovens que se vão nos países emissores. As pessoas devem ter condições nos seus países para não emigrarem e compete aos países de acolhimento, que são mais ricos, ajudarem os países emissores a terem condições para evitar a emigração. Não podemos ver isto apenas na ótica dos países de acolhimento, temos, também, de pensar nos países emissores e no mal que a emigração lhes traz. Mas isto não será nada fácil, a principal razão que leva ao subdesenvolvimento dos países emissores de emigração é a corrupção brutal e generalizada das suas elites dirigentes, basta pensar no que sabemos sobre os países que nos são mais próximos desde o Brasil a Angola, e aos restantes. O desafio de ajudar os países em desenvolvimento, contornando a corrupção as suas elites, para parar a emigração é tão grande como o desafio de integrar e assimilar os imigrantes nos países de acolhimento, e igualmente necessário.
Madalena Balça/Rómulo M. Ávila/MS
Redes Sociais - Comentários