Temas de Capa

“Gato por lebre”

eurovisao - milenio stadium (1)

 

Dei por mim a pensar na velha expressão “gato por lebre”. A propósito, neste momento particular, de uma enganadora e perniciosa iniciativa chamada Festival da Eurovisão. Não, não quero de todo discutir a participação portuguesa de 2023. Que, mais que não seja por comparação, me pareceu sóbria e digna. Nem pretendo defender o “antigamente”, embora se perceba, com facilidade e sem precisar de desenhos, que as “fórmulas resolventes” estão mais apuradas do que nunca, que os guarda-roupas e as encenações de tempero tecnológico valem hoje muito mais pontos e reconhecimento do que as canções e as vozes. A minha questão é outra: fazer disto o acontecimento musical de um ano inteiro, omitindo mecanismos de conveniência e estratégias industriais (por favor, não se utilize aqui nada de próximo à ideia de arte…), é sinónimo de mentira e de doença.

Tentar perceber a pulsação da música popular por aquilo que aqui se vê, mais do que se ouve, é distorcer tudo e apoucar aqueles que vão resistindo e seguindo os seus caminhos, de trabalho e de talento. Vivemos num país em que a divulgação musical está condicionada a interesses que passam muitas vezes ao lado da música, em que boa parte das playlists radiofónicas parte de uma base – alegadamente científica e “testada” – que revela muita ignorância, muita preguiça e… talvez seja melhor ficarmos por aqui, deixando outras “manigâncias” para futuras reflexões. Apresentam-nos distinções “pela qualidade” (os prémios Play, para que não fiquem dúvidas) que o não são; são, isso sim, uma forma de a indústria sublinhar “os seus”, ignorar “os outros”, afunilar o gosto, querer mostrar diversidade e inclusão quando o que se passa é precisamente o contrário. Bastará olhar para os critérios de pré-nomeação e nomeação. E para o facto de haver até um prémio de uma “entidade” que há algum tempo deixou de contar e de existir – a “crítica especializada”…

 

eurovisao - milenio stadium

 

Voltando aos festivais: no de lá, passa sobretudo gente sem biografia, sem mérito, sem alcance e sem consequências, por mais que nos tentem convencer do contrário. Que vale pelos três minutos de “fama” e pelo indecoroso espectáculo das casas de apostas (!!!!). Há quase quarenta anos, enviado ao Luxemburgo para a cobertura de uma edição da coisa, escolhi como título da reportagem do “certame” (odeio a palavra, mas aqui serve na perfeição) isto: “Cantiguinhas trólaró já não enganam ninguém”. Afinal, quem se enganou fui eu… Dessa ocasião, guardo mesmo só três memórias: 1) descobrir um autor e compositor italiano chamado Franco Battiato, com uma canção cantada por Alice; 2) acompanhar a vivacidade extrema e a verticalidade estética de Maria Guinot, a defender uma das canções que (nos) ficou, perene, “Silêncio e Tanta Gente”; 3) contribuir para a conversa telefónica que “apresentou” o maestro François Rauber, arranjador de muitos temas de Jacques Brel, a Fernando Tordo, contacto que acabaria por render vários e óptimos discos portugueses.

Quanto ao nosso, apesar dos esforços de revitalização depois de muitos anos em respiração assistida, constato que o investimento concentrado nos valeu, na minha opinião, apenas duas canções para durar: “Amar Pelos Dois”, com o selo Sobral, e “Saudade”, de Maro. Nada a opor, a um Festival. A dúvida é que possa constituir a maior das apostas anuais para a música, com meios desproporcionados, pelo exagero, face ao que gera, efectivamente. Lembro só isto: em quantas playlists tinha aparecido, até 2017, o nome de Salvador Sobral, artista muito grande e não-alinhado, pelo que faz, pelo que pensa, pelo que diz? Zero, ou perto disso. Conclusão pessoal: está tudo bastante desfocado.

O que vale é que, este ano, já passou. E podemos respirar fundo e voltar ao que (me) interessa: a música. Sem pontuações, mas com muito prazer. Já agora, espero sinceramente que se apliquem quanto antes os 30% para a música portuguesa e que se definam os critérios respectivos, que devem incluir as novidades, a par das boas memórias.

João Gobern/MS

 

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