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Fala quem sabe

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O Mundial do Qatar está a chegar: mesmo com todas as polémicas que o envolvem. Se quando pensamos nesta competição de imediato nos vêm à ideia imagens de enorme alegria, partilha e liberdade, rapidamente percebemos que esta não vai ser uma edição igual às que conhecemos até hoje. O sonho qatari de organizar um evento tão importante e possibilitador de enorme projeção como um Mundial levou a que milhares de migrantes (que correspondem a 95% da força laboral do país) fossem explorados – muitos deles acabaram, inclusivamente, por morrer na construção dos estádios destinados a acolher a competição. O jornal The Guardian estima que desde 2010 morreram cerca de 6500 trabalhadores.

Mas não ficamos por aqui. As já conhecidas limitações às liberdades individuais e aos direitos humanos impostas neste pequeno país do Médio Oriente – como, por exemplo, o facto de qualquer intimidade entre pessoas em público poder ser considerada ofensiva ou ser constituir delito beber álcool ou estar embriagado num local público – causam indignação e até alguma apreensão. No início deste mês, Khalid Salman, um embaixador do Mundial do Qatar 2022 classificou, durante uma entrevista à estação televisiva ZDF, a homossexualidade como um “distúrbio mental” e acrescentou que todos aqueles que se deslocarem ao país para participar e assistir à competição “têm de aceitar as regras”.

A somar a isto tudo temos ainda a questão da obrigatoriedade do Campeonato acontecer no inverno, ao invés do verão, como é habitual – facto que se explica pelas elevadas temperaturas registadas naquele país. Ainda assim, esta edição vai mesmo acontecer e quisemos saber, junto de quem sabe, o que poderemos esperar deste Mundial – com especial enfoque nas seleções de Portugal e Canadá.

Fernando Eurico é um dos mais reconhecidos jornalistas desportivos portugueses, dono de uma inconfundível voz que chega até nós através dos microfones da rádio Antena1. Apreciador de desporto e de “pessoas que falam muito depressa”, Fernando Eurico confessa que desde sempre teve nas veias “o fervor futebolístico”. Com mais de 30 anos de carreira, o jornalista soma um sem número de experiências em diversos eventos desportivos, tais como Campeonatos do Mundo, Europeus e Jogos Olímpicos. Com Fernando Eurico toda a gente “grita que é golo”!

Milénio Stadium: A escolha da localização deste Mundial foi, desde início, bastante contestada, sobretudo pelas denúncias e escândalos de corrupção e violação de direitos humanos que vieram a público, fazendo desta edição uma das mais polémicas de sempre, senão a mais. Mais recentemente, Joseph Blatter, presidente da FIFA na altura da escolha do anfitrião deste Mundial, admitiu que a decisão foi “um erro”. Concorda?
Fernando Eurico: Concordo em absoluto, porque cada vez mais o símbolo da FIFA é o cifrão – é uma organização que se rege quase exclusivamente por dinheiro, daí a necessidade que a FIFA tem em querer convencer ao alargamento da competição, do Campeonato do Mundo, para mais países. Isso significa mais receitas publicitárias e sobretudo mais direitos de transmissão televisiva. A FIFA é uma organização tremenda, engloba o futebol de todo o planeta, e de facto não foi só esta escolha do Qatar – até noutras edições anteriores houve muita contestação, porque é o dinheiro que faz definir o local. O Qatar queria tornar-se visível porque tem muito dinheiro, porque tem muitos investimentos e porque quer afirmar-se também perante o próprio mundo árabe e a FIFA foi na cantiga, claramente. Mas a confissão de Blatter é certamente o reconhecimento de que a FIFA não esteve bem e é pena que o atual presidente, o Gianni Infantino, não perceba ou tente silenciar os que contestam sobretudo a questão da violação dos direitos humanos naquele país ao dizer “falemos de futebol”. A FIFA tem obrigações sociais, éticas, morais – até pelo dinheiro que gera, pelas pessoas que influencia diariamente. E, portanto, creio que já deu um tiro nos pés antes mesmo de começar este Campeonato do Mundo.

MS: Como é que este Mundial vai ser para os adeptos? Sabemos bem que o país impõe uma série de restrições (a homossexualidade, por exemplo, é criminalizada e os direitos das mulheres são limitados), existem diversas formalidades para entrar no Qatar, o alojamento é caro e há pouca oferta… Corre-se o risco de se perder o espírito que estamos a habituados a associar a este tipo de evento?
FE: Claramente que se perde todo o espírito que um Campeonato do Mundo tem, que é o da partilha, da diferença e o da celebração. Não consigo recordar qualquer momento do desporto do Qatar que seja, por exemplo, vivido como na esmagadora maioria dos países e de facto vai ser muito castrante – é mesmo essa a palavra – para quem for a este Campeonato, seja para o mesmo espectador, seja para o mero jornalista. Já soube também que há extremas restrições nas questões mediáticas: autorizações para se filmar, autorizações para ir a determinados sítios, portanto eu entendo que vai ser um Mundial em que o espírito claramente já se perdeu.

MS: A convocatória do selecionador português Fernando Santos fez correr muita tinta – a ausência de Renato Sanches e a estreia do jovem António Silva foram algumas das surpresas, mas não as únicas. Qual a sua opinião sobre as escolhas do “Engenheiro”?
FE: Eu acho que em Portugal todos temos a ideia de que somos treinadores de bancada e cada um tem a sua opinião. Eu também tenho a minha, mas se o Fernando Santos é o selecionador, se é ele o escolhido pela Federação Portuguesa de Futebol, se o trabalho dele é passar os dias a ver vídeos, a ir ver jogos, a ter uma equipa técnica toda à volta a avaliar todas as condições, todas as qualidades, todas as competições, todas as limitações dos jogadores potencialmente convocáveis, quem sou eu para duvidar das escolhas do Fernando Santos? Certamente qualquer um de nós poderia escolher outros jogadores, mas Fernando Santos tenho-o como um homem honesto, como um selecionador que não pode agradar a todos, evidentemente, mas se escolheu estes é porque são estes que lhe dão total confiança. Se depois as escolhas resultarem, vão todos aplaudir, já ninguém se lembra de quem escolheu. Se a coisa correr mal, aí sim as coisas vão agudizar-se – mas isto é um bocadinho também o espírito de ser português.

MS: Poderemos assistir, neste Mundial, a uma das últimas exibições de Cristiano Ronaldo pela seleção portuguesa?
FE: Eu acho que é o fim de Cristiano Ronaldo em Campeonatos do Mundo, vai fazer 38 anos em fevereiro e não o estou a ver com 42 no próximo Campeonato do Mundo. Apesar de ele dizer que quer ir ao próximo Campeonato da Europa, realisticamente a vontade só não chega. Mesmo sendo um super atleta, um futebolista que se sabe resguardar e que se sabe preparar convenientemente, convenhamos que até para a imagem que construiu, que é uma imagem poderosa, de grandíssimo jogador – provavelmente o jogador mais ganhador de sempre, ou provavelmente o jogador que mais gente influenciou ao longo de uma carreira – acredito que o próprio Cristiano Ronaldo vai chegar a essa conclusão facilmente porque se não irá destruir tudo o que de bom construiu. E sabemos que construir é muito difícil, mas destruir basta um gesto irrefletido (que ele já teve alguns até no Manchester United que lhe estão a custar caro). Ronaldo vai mesmo despedir-se aqui no Qatar como um jogador fantástico, que vai ficar como uma lenda para a história do futebol mundial.

MS: O grupo de Portugal conta com as seleções do Gana, Uruguai e Coreia do Sul como adversários. O que poderemos esperar destes duelos? Quem é que poderá dar mais “dores de cabeça” a Portugal?
FE: Claramente a seleção do Uruguai é a principal rival de Portugal neste grupo – foi o Uruguai que eliminou Portugal no último Campeonato do Mundo, na Rússia, nos oitavos de final. Uma seleção poderosa, tem excelentes jogadores e, portanto, será daí que pode vir o mal maior para a equipa portuguesa. Dos africanos podemos esperar tudo, eles são fantásticos com a bola no pé, mas muitos deles, ou a esmagadora maioria deles joga na Europa, mas não são jogadores taticamente tão rigorosos como os europeus e eu penso que poderá estar aí o problema que a seleção do Gana vai ter. E a Coreia do Sul é sempre aquela seleção, digamos, de jogadores quase todos muito parecidos, só talvez o Son, que joga no Tottenham, se pode destacar em termos de maior qualidade, porque é de facto um grande jogador. É uma seleção treinada por Paulo Bento – aqui o fator nacional também vai influenciar, porque Paulo Bento foi, permitam-me a expressão, corrido da seleção nacional depois de uma derrota com a Albânia em Aveiro. E mesmo sendo português eu creio que ele vai querer mostrar que está a fazer um bom trabalho na seleção sul-coreana. De resto acredito que a Coreia do Sul vá ser uma seleção chatinha mas que ao fim e ao cabo Portugal vai acabar por passar esta fase de grupos, com maior ou menor dificuldade. Depois, a eliminar, as coisas já são diferentes porque é OK ou K.O. – basta um erro e tudo acaba e basta um golo e tudo se mantém, ou seja o sonho mantém-se vivo.

MS: Uma sondagem requisitada à Aximage pelo JN, DN, TSF e O JOGO revelou que apenas 8% dos portugueses inquiridos acreditam na conquista do título por Portugal. Como podemos explicar este “desacreditar”?
FE: Eu acho que é simples aceitar esta sondagem e aceitar a opinião da esmagadora maioria dos adeptos nacionais, porque felizmente há adeptos que ainda têm o poder de raciocínio, ainda têm poder de análise e não entram na nacionalite aguda, como no campeonato há a clubite aguda. Eu acho que temos que ser realistas: Portugal tem uma geração de grandes jogadores, de fantásticos jogadores, e eu acredito que possa chegar pelo menos aos quartos de final deste Campeonato do Mundo. Mas Portugal não vai jogar sozinho: o Brasil e a Argentina estão mais poderosos que nunca, pelo menos do que nas últimas edições do Campeonato do Mundo, os Países Baixos estão fortíssimos, a Inglaterra é uma seleção que se anda a preparar para este momento há muito, muito tempo, a França é sempre aquela equipa candidata (até porque é a campeã em título), temos a Alemanha que, nesta altura, ainda é uma incógnita, mas é sempre a Alemanha, o próprio Uruguai também se vai querer imiscuir nas contas… e depois há outras seleções como a Croácia, que foi à final do último Campeonato do Mundo. Ou seja, Portugal tem aqui um leque de, vá lá, uma dezena de seleções que podem ombrear e, portanto, querer cantar vitória… isso querer, todos queremos que Portugal seja campeão do mundo. A história também já nos mostrou que quando temos demasiada soberba as coisas correm sempre mal – e, portanto, o melhor mesmo é mantermo-nos na expectativa. Torcer, apoiar, acreditar e cabe aos jogadores depois poderem responder em campo.

MS: Poderá Fernando Santos abandonar o cargo de selecionador caso Portugal não consiga um bom resultado neste Mundial?
FE: Eu acho que o fim de Fernando Santos ao serviço da seleção nacional vai acontecer, ele já tem grande desgaste, apesar de ser querido pela Federação Portuguesa de Futebol, nota-se que o discurso de Fernando Santos já deve custar a entrar também na cabeça dos próprios jogadores. E não vem mal ao mundo, porque as seleções têm ciclos, os clubes têm ciclos, os treinadores têm ciclos e é bom dar a vez a outros. E Fernando Santos já não precisa de absolutamente mais nada para sustentar a carreira que teve no futebol português, quer nos clubes quer na seleção nacional.

MS: O Canadá conseguiu apurar-se para o Mundial após uma “seca” de 36 anos. Quais são as expectativas, sendo que esta é apenas a segunda vez que o país marca presença na prova?
FE: Eu acho que para os canadianos – adeptos e jogadores da seleção do Canadá – é de facto fantástico após esses 36 anos de ausência voltar ao galarim do futebol mundial, e motivação não faltará. Não creio – e eles também não, quer os adeptos, quer os jogadores – que possam vir a ser campeões do mundo, que possam inclusive passar à próxima fase, porque o grupo é muito difícil, mas tudo o que vier, nem que seja uma vitória, boas exibições, isso para mim já será uma grande conquista para a seleção do Canadá. O fator desconhecimento dos adversários, ou seja, vão olhar para o Canadá com alguma desconfiança no sentido de “bom, eles já não vêm cá há muito tempo e, portanto, são uma presa fácil”, poderá funcionar a favor do Canadá. Mas tudo o que conseguirem, pelo menos de se mostrarem e de mostrarem que têm valor para voltar às grandes competições mundiais, acho que já será a grande conquista da seleção do Canadá.

MS: Os canadianos terão que enfrentar Bélgica, Marrocos e Croácia. Em teoria, podemos dizer que é um grupo mais difícil do que o de Portugal?
FE: Eu acho que é muito mais difícil do que o grupo de Portugal. A Bélgica tem excelentes jogadores, ainda não consegui entender por que razão a Bélgica não conquistou qualquer Campeonato da Europa ou do Mundo. É uma equipa que dá gozo ver jogar e acredito que neste Campeonato do Mundo volte a estar em grande, é uma seleção muito poderosa. A Croácia é só vice-campeã mundial, também tem excelentes jogadores e vai querer, no mínimo, estar também lá em cima, nas decisões deste Campeonato do Mundo. E Marrocos é uma das melhores seleções africanas, quase todos os jogadores atuam no campeonato francês, que é competitivo. É uma seleção tida como uma das melhores de África, está sempre também representada, seja nas fases finais da Taça das Nações Africana, seja também no Campeonato do Mundo. Tem mais tarimba nesta altura que o Canadá e todos sabemos que a experiência é fundamental neste tipo de competições. Portanto, claramente o Canadá tem aqui uma tarefa mais difícil que a portuguesa.

MS: Esta seleção canadiana conta com dois nomes bem conhecidos pelos adeptos portugueses: o “dragão” Eustaquio e o “flaviense” Steven Vitória. São eles dois atletas a ter debaixo de olho? Considera-os peças importantes nesta seleção?
FE: Eu julgo que o Steven Vitória é um central muito experiente, sabe ao que vai e dele podemos esperar rigor, competência e certamente voz de comando. É um jogador que eu aprecio, pela sobriedade, e pode ser um fator de acalmia numa equipa que, pelo menos no primeiro jogo, vai tremer um bocadinho, porque é o regresso à alta rodagem e poderá ter ali um momento de dúvida – e o Steven Vitória pode ser esse calmante necessário. O Eustaquio é claramente dos dois o que está a dar mais nas vistas. Sérgio Conceição já encheu a boca de elogios a Stephen Eustaquio. Ele demonstra em campo – ainda agora no último jogo com o Boavista – que é um jogador que está diferente para melhor, porque não é só um jogador que defende, é agora também um jogador que começa a aproximar-se mais das zonas de finalização e a marcar golos e isso pode ser rentabilizado também pela seleção do Canadá. São claramente dois jogadores que vão marcar também alguma diferença no todo da seleção do Canadá. São sem dúvida peças importantes.

MS: Enquanto portugueses é óbvio que queremos que a nossa seleção chegue o mais longe possível – de preferência até ao fim e que levante a taça! Mas o que é que considera que Portugal conseguirá realmente alcançar neste Mundial? E o Canadá?
FE: Eu acho que Portugal tem que traçar como meta, na minha perspetiva – se fosse eu o selecionador obviamente – tentar chegar aos quartos de final. Porque uma seleção como Portugal, que já foi campeã da Europa, que já teve um terceiro lugar num Campeonato do Mundo, que já teve um quarto lugar num Campeonato do Mundo, tem que pelo menos estar entre as oito melhores seleções e os quartos de final serão o objetivo, diria, mínimo. Passar a fase de grupos acho que é uma obrigação, embora o futebol, como disse, é sempre imponderável. Depois na primeira eliminatória mostrar que de facto Portugal tem capacidade para ir mais à frente e depois é tentar chegar lá. É difícil, os cruzamentos são difíceis, tanto quanto tenho na memória Portugal para chegar à final teria que afastar eventualmente a Argentina, a França, a Espanha e, por exemplo, o Brasil. Ou seja, é muito difícil poder fazer aqui conjeturas do que poderá acontecer, mas eu prefiro dizer que Portugal deve traçar como primeira meta passar a fase de grupos, depois chegar aos quartos de final pelo menos e daí em diante tudo pode ser possível para qualquer seleção. O Canadá, passar a fase de grupos seria um sonho e eu acho que se isso acontecesse seria tremendo – mas volto a dizer, olhando para a composição do grupo, acho que se tentar lutar com Marrocos pelo terceiro lugar possa ser já extremamente bom depois de tantos anos de ausência de uma competição como o Campeonato do Mundo.

MS: Realisticamente falando, quem são os verdadeiros favoritos à vitória desta competição? Se tivesse que apostar, quem diria que será o novo campeão do Mundo?
FE: Tenho quatro seleções que considero muito fortes: eu acho que este Mundial vai ser o Mundial dos sul-americanos. Brasil e Argentina, volto a dizê-lo, estão muito poderosos. Acho que os Países Baixos podem ser a grande surpresa, impressiona a forma como eles atuam. E depois a França que é uma equipa cirúrgica, é a campeã do mundo, tem esse estatuto e vai querer repetir a façanha. Eu acho que esses são os quatro grandes favoritos e depois temos um segundo patamar onde estão as outras seleções: Portugal, Inglaterra, Bélgica, Espanha, Uruguai, Croácia… Julgo que vai andar um bocadinho por aqui a vitória neste Campeonato do Mundo.

Inês Barbosa/MS

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