“Estar presente para os filhos é aceitá-los” – Tiago Souza
Entrar em conflito com a sua sexualidade pode ser algo mais recorrente do que se imagina. As perturbações mentais que esse conflito pode originar, podem ser leves, moderadas ou mesmo graves. Nesta área, como em tantas outras da vivência humana, é preciso que se pense seriamente em procurar a ajuda de um profissional que tem a capacidade para acolher os seus sentimentos, as suas perceções e questões – um psicólogo.
É conduta ética importante, indissociável da prática da psicologia, o respeito pela diversidade sexual e de género. Um psicoterapeuta ou psicólogo pode e deve ser quem ajuda a refletir sobre tudo o se sente, o que se teme, e que transporta uma sensação de insegurança e até medo. É compreensível que algumas pessoas, perante as dúvidas sobre o que são, ou querem ser, sejam tomadas por profundas angústias. O mundo, estando mais aberto, ainda é um terreno cheio de preconceitos e resistente à diversidade e, sem dúvida, crescer numa sociedade e cultura imersas por esses preconceitos pode marcar negativamente o desenvolvimento de sua identidade e sexualidade.
Daí que seja importante trilhar um caminho que mergulhe na profundidade do que somos, acompanhados por quem sabe e nos ajude a explorar tudo o que sentimos. Tiago Souza é psicoterapeuta e ajuda-nos a entender como é importante a compreensão e acompanhamento de quem está próximo, quando as dúvidas ou questões sobre orientação sexual surgem. Naturalmente, neste caso, como em tantos outros a família tem um papel preponderante.
Milénio Stadium: É possível que a orientação sexual mude com o decorrer do tempo?
Tiago Souza: A orientação sexual é um dos aspectos que compõe a nossa sexualidade. Podemos pensar em quatro dimensões fundamentais: a biológica (o sexo que temos ao nascermos), a psicológica (como nos percebemos e sentimos em relação a nós mesmos como seres sexuais), a cultural (como a sociedade enxerga a sexualidade, os papéis esperados por homens, mulheres e indivíduos que não se encaixam apenas no feminino e masculino, o que a lei ou a religião definem como esperado ou aceito), e a ética, ou como a relação com os outros e nós mesmos é influenciada pela sexualidade, e o que consideramos certo e errado, desejado ou não nas nossas relações interpessoais. A orientação sexual se refere a atração que temos por outras pessoas. Na verdade, atualmente chamamos isso de afetividade, o que pode ou não incluir a quem nos atraímos sexualmente. E nossa atração e afeto mudam com o tempo, do mesmo jeito que podemos nos apaixonar por uma pessoa hoje, e esse sentimento se transforma e podemos nos apaixonar por outra pessoa no futuro. Podemos ter uma atração por alguém que tem o mesmo sexo que nós hoje, mas no futuro nos sentirmos atraídos por alguém de outro sexo. Isso é um fenômeno humano natural, e que pode acontecer com qualquer pessoa, em qualquer período da vida.
MS: A definição de orientação sexual pode ser influenciada por fatores externos? Por exemplo, uma situação de abuso sexual pode ser determinante nessa definição?
TS: Fatores externos, infelizmente, tem um papel predominantemente negativo na expressão da nossa sexualidade. Por exemplo, a repressão familiar e da religião, discriminação, e mesmo definições de orientação sexual consideradas como doença pela ciência até recentemente inibem a expressão saldável da orientação sexual de muitos indivíduos. Homossexualidade foi considerada uma doença ou desvio até 1992 pela Organização Mundial da Saúde e assim diagnosticada pela comunidade médica. Hoje sabemos que a homoafetividade, assim como todas as orientações afetivas e sexuais, são expressões normais e naturais da sexualidade. Atualmente, os fatores que mais influenciam mudanças em orientação sexual e afetiva são o cultural e o trauma. Do ponto de vista cultural, pessoas homoafetivas apenas se revelam publicamente quando se sentem seguras para tal, o que ainda não é a norma. Muitos indivíduos temem por sua integridade, apenas por serem quem são. O outro fator, o trauma, leva a pessoa a desenvolver defesas contra a dor do abuso. Muitas vítimas reprimem seus desejos e sentimentos por conta dos abusos, tanto sexual como emocional. No entanto, muitas dessas mudanças são defesas e não um processo natural ou saudável.
MS: Que tipo de transtorno mental pode ser desencadeado com a dúvida sobre a própria sexualidade? Estados de ansiedade, depressão, isolamento social…? E como podem ser tratados?
TS: Os questionamentos em relação a própria sexualidade são normais e esperados. No entanto, quando há falta de diálogo e apoio, e discriminação contra as opções sexuais de alguém, isso comumente leva a transtornos depressivos, ansiedade, dependência química, e alto risco de automutilação e suicídio. Em casos de persistentes questionamentos e pensamentos sobre a sexualidade que levam a aflição e interferência na vida diária, isso pode ser um caso de transtorno obsessivo-compulsivo sexual. O melhor caminho terapêutico é uma combinação de tratamento psiquiátrico e psicoterapia, para que os sintomas de ansiedade, tristeza, automutilação e comportamentos obsessivos possam dar lugar ao autoconhecimento, aceitação de si e desenvolvimento da resiliência para se enfrentar as barreiras impostas aos indivíduos que lutam para serem aceitos como são. A educação da comunidade, de famílias e organizações é também parte de um tratamento social, para que aprendam a compreender, aceitar e respeitar a todos e todas, sem discriminação e julgamento.
MS: Qual é o papel dos pais quando os filhos estão numa fase de indefinição de orientação sexual?
TS: A família tem um papel fundamental no desenvolvimento de seus filhos e filhas. Os pais precisam criar um espaço seguro e saudável em casa para que os filhos e filhas se sintam confiantes e compartilhem seus dilemas e esperanças e se sintam ouvidos, acolhidos e respeitados. Ter todas as respostas não é necessário, mas mostrar que dúvidas fazem parte do crescimento, sexualidade é uma expressão natural da vida e dialogar com aceitação e respeito, é. E podemos adicionar que, mesmo que nós como pais tenhamos nossos valores e opiniões, nós precisamos apoiar nossos filhos a contruírem os próprios valores e tomarem suas decisões, contribuindo para que sejam adultos capazes de agirem com autonomia e autoconfiança, incluindo suas decisões sobre sua orientação sexual. Estar presente para os filhos é aceitá-los.
MS: E qual o papel das escolas? Que tipo de aproximação junto das crianças e jovens pode acontecer ou é aconselhável que aconteça nesta área da sua intimidade?
TS: A educação sexual ainda é um tabu em muitas sociedades. A escola deveria ser um local de instrução e aprendizado onde aprender sobre a sexualidade e a ética tivessem o mesmo valor da matemática e da literatura. A educação sexual não significa incentivar a atividade sexual, mas sim instruir para que o conhecimento leve a escolhas saudáveis e seguras. Sexualidade é mais que sexo, e normas sociais, avanços científicos, a evolução das relações e sentimentos, direitos, deveres e escolhas devem fazer parte deste processo educativo. Quando bem informados, indivíduos podem então tomar decisões sobre sua sexualidade, como expressá-la e vivê-la, na sua intimidade e no seu tempo. A escolha sexual pertence a cada um. Mais conhecimento e educação significa menos risco, menos abuso e violência sexual, e mais consentimento, respeito mútuo, saúde mental e satisfação nas relações pessoais.
MB/MS
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