Esperança no destino
Há imagens que nos ferem os olhos e principalmente a alma, mas às quais temos que prestar muita atenção e entender a realidade que não nos deve ser indiferente. Inúmeras crianças são lançadas à sorte numa fronteira que se espera que traga um futuro significativamente melhor. Vemos as crianças, mas não vemos a dor que transportam com elas – a dor delas e ainda o peso da dor dos pais que, provavelmente num ato de desespero e, acredito eu, de tremendo amor, puseram nas mãos do destino estes filhos, na esperança de que a vida se encarregue de lhes dar a dignidade que merecem.
No entanto, as perguntas são muitas e nesta edição do jornal Milénio Stadium procurámos, junto de quem sabe muito da mente humana, perceber algumas motivações e encontrar respostas – o Dr. Tiago Souza, psicoterapeuta, ajuda-nos a entender, através da sua perspectiva profissional, algumas das questões que se levantam quando pensamos em todas as crianças que estão sozinhas, à procura de algo que nem elas sabem o que será.
Milénio Stadium: O fenómeno não é novo, mas por razões diversas há cada vez mais crianças que sozinhas passam ou tentam passar fronteiras. A maioria à procura de um futuro – com paz, e com condições de vida que não encontram no seu país natal.A questão que lhe coloco em primeiro lugar é – que homens e mulheres serão um dia estas crianças que se veem num país que não é o seu, onde se fala uma língua que não é a sua e sem terem a mãe ou pai por perto?
Dr. Tiago Souza: Realmente, o fenômeno não é novo, mas com a atual difusão de informações em tempo real e a enorme disparidade de distribuição de recursos básicos para a as popuações, vemos a história se repetir em grandes proporções, tendo em vista a busca desesperada por asilo ou condições melhores de vida. As consequencias para as crianças que embarcam nesta jornada são imprevisíveis. O impacto emocional será significante, e a ausência de apoio essencial na infância nos mostrará uma geração aculturada, sem raízes ou história, em busca de sentido para suas existências. Os riscos serão enormes, pois será uma geração com grandes dificuldades de encontrar perspectiva de vida e sucesso, além de ter sua história manchada por medos e hostilidade. Será muito difícil para que se sintam pertencendo a sociedade.
MS: O que faz crianças (algumas com dois, três, quatro anos…) terem força para fazerem o que os pais lhes pedem?
TS: O instinto é o que move estas crianças, acatando as instruções dos parentes como uma ordem para sobreviverem. As crianças obedecem aos pais e autoridades, pois é parte do seu processo de desenvolvimento e de onde sorvem os modelos da vida adulta. Muitas apenas enxergam como a coisa certa a se fazer, sem entenderem plenamente as consequências, ainda mais quando enxergam o senso de urgência e desespero no semblante de seus pais.
MS: Por outro lado, o que faz um pai ou uma mãe “empurrar” os filhos para uma situação destas?
TS: Muitas destas famílias têm esperança de cruzarem juntas as fronteiras. Quando descobrem o futuro que lhes está reservado, com prisões e risco de deportação, tem que tomar esta decisão: voltarem ao risco juntos, ou pelo menos mandar suas crianças, que serão tratadas com menos severidade pelas autoridades. É uma situação traumática sem precedentes, e um choque que não dá escolhas. Como parentes, muitos entendem que, se ao menos entregarem seus filhos nas mãos de uma nação e autoridades aparentemente mais competentes para suprirem suas necessidades, o fazem com pesar, mas com uma convicção (mesmo que ilusória) de que seus filhos serão tratados com mais dignidade se ficarem. Não há palavras para descrever o que se passa no coração de uma mãe ou pai, tendo que se afastar de seus pequenos. Apenas o instinto de sobrevivência e o desespero podem explicar.
MS: Na Europa as crianças migrantes são maioritariamente refugiadas de guerra – a maior parte assistiu a verdadeiras atrocidades antes de partir. Mas quando chegam à Europa enfrentam a dura realidade – não há tiros, nem bombas, mas há violência, fome e condições mínimas de vida. A esperança pode transformar-se em desespero e falta de confiança?
TS: Quando crianças e jovens fogem cenários de conflito e guerras, com todas as suas atrocidades, elas podem desenvolver uma resiliência e capacidade de adaptação, mesmo em face dos traumas que presenciaram. Como elas reagirão às condições de vida que encontrarão no futuro dependerá muito desta capacidade. Vale lembrar que a resiliência pode e deve ser ensinada desde cedo para as crianças, que aprenderão a enfrentar desafios com maior chance de adaptabilidade e sucesso.
No caso dos refugiados de guerra, há a necessidade de um acolhimento especial. Sem o desenvolvimento da capacidade de superação, a esperança que tem num futuro melhor pode levar a desilusão e a falta de perspectiva num futuro com mínimas condições de dignidade humana. E esse acolhimento passa a ser responsabilidade do Estado, que nem sempre terá condições de responder a crescente demanda dos refugiados.
MS: Noutras zonas – como é o caso da fronteira México/Estados Unidos da América – muitas crianças são por vezes “usadas” como escudo protetor dos pais perante as autoridades do país onde pretendem entrar. De que forma isto pode pesar na formação das suas personalidades?
TS: A criança assimila os rótulos e papéis que lhes são atribuídos, no processo de desenvolvimento de sua identidade. Quando situações extremas como esta marcam a vida de uma criança, ela corre o risco de se identificar apenas como um objeto, como dispensável ou como não amada e desejada por seus tutores e pais. Muitas destas crianças passam não apenas a assumir esses rótulos, mas também a tratarem outras pessoas como descartáveis. É triste e preocupante o destino de adultos que perderam a capacidade de se identificarem e identificarem outras pessoas como importantes, amadas e queridas. O que se vê é a crescente banalização da negligência e da violência, com raízes nessas devastadoras experiências.
MS: Acha que toda esta situação pode ser um reflexo de um certo retrocesso civilizacional?
TS: O mundo é cada vez mais complexo, com necessidades ainda não supridas e com a crescente diversidade, não sempre respeitada e valorizada.
Ainda assim, há também mais atividade de solidaridade e acolhimento, serviços prestados para o bem comum e organizações comprometidas com o resgate da dignidade humana. Vivemos uma situação sem precedentes, mas o que falta é justa destribuição dos recursos de garantia de condições de vida das comunidades. Das necessidades mais básicas como alimentação e abrigo às garantias a educação, lazer e cultura, o que falta é interesse governamental para que esses direitos sejam respeitados e acessíveis. A sociedade é mais que autoridades inescrupulosas, emboras elas ainda detenham o poder de decisão sobre a vida de bolhões de vidas no nosso planeta.
Também nós como cidadãos, muitos imigrantes e refugiados, temos o poder de colaborarmos para esta restauração, quando tratamos a todas e todos com respeito, dignidade, e com direitos como nós mesmos. Assim, nos reconheceremos mais como a famlília humana que somos. O ditado nos diz que é preciso uma vila inteira para se criar uma criança. Assim também é verdade conosco, quando colaboramos para que isso seja uma realidade, independente de fronteiras ou barreiras de nacionalidade, credo ou raça.
Catarina Balça/MS
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