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Dar voz à experiência luso-canadiana através da literatura

Photo: @copyright

Kelly Pedro é uma das vozes emergentes da literatura luso-canadiana contemporânea. Filha de emigrantes, o pai oriundo da ilha Terceira, nos Açores, e a mãe de uma pequena aldeia perto do Porto, cresceu no seio da comunidade portuguesa em Toronto, absorvendo desde cedo os ecos da experiência migratória. Atualmente a residir em Kitchener, a jornalista, escritora e mestranda em Escrita Criativa na Universidade de Guelph, escreveu um romance sobre a experiência de ser lusodescendente no Canadá. A sua escrita tem sido acolhida com entusiasmo, sobretudo por leitores anglófonos, ávidos por descobrir narrativas até agora silenciadas sobre a emigração portuguesa.

Nesta entrevista, Kelly Pedro reflete sobre o perfil dos leitores interessados na comunidade portuguesa, a importância da literatura na preservação da identidade cultural e linguística, os desafios da visibilidade literária entre gerações e o papel das instituições no apoio a autores da diáspora. Defende que contar histórias é essencial para preservar memórias, unir gerações e promover empatia. Acredita que, embora o quotidiano da emigração tenha dificultado a partilha de histórias no passado, hoje há mais espaço – e vontade – para ouvir e registar essas vivências únicas que definem o ser português fora de Portugal.

Milénio Stadium: Na sua opinião, qual é o perfil dos leitores de obras sobre a comunidade imigrante portuguesa atualmente? O que procuram nesses livros?

Kelly Pedro. Créditos: DR.

Kelly Pedro: Na minha experiência, o meu trabalho tem sido bem acolhido por leitores de língua inglesa no Canadá e nos EUA. Há um grande interesse por histórias sobre a comunidade imigrante portuguesa, talvez porque tantas dessas histórias permaneceram por contar, quer por falta de oportunidade, quer porque muitos imigrantes portugueses não se sentiam à vontade para as partilhar. No entanto, com o surgimento de pequenas revistas literárias e editoras independentes, como a Arquipélago Press (que publicou a antologia Here and Elsewhere), criou-se um espaço para essas narrativas. Creio que os leitores se sentem atraídos por estes livros porque oferecem uma perspetiva sobre um mundo ao qual talvez não tivessem acesso de outra forma. A comunidade portuguesa é, na sua maioria, discreta e pouco propensa a partilhar as suas histórias publicamente — por isso, muitos desses testemunhos ficaram por documentar. Não é que não fossem escritos: o meu pai, por exemplo, escrevia poesia, mas nunca a partilhou, e também guardou diários do meu bisavô que ninguém leu. Quando os meus pais chegaram ao Canadá, estavam focados em sobreviver: encontrar trabalho, casa, alimentar três filhos pequenos. Escrever ficou para segundo plano. Hoje, a comunidade está mais estável e há espaço para essas histórias — e os leitores agradecem.

MS: De que forma pode a literatura contribuir para preservar a identidade cultural e linguística das comunidades portuguesas no estrangeiro?

KP: A resposta simples é: documentando. Historicamente, muitas culturas preservaram as suas tradições através da narração de histórias, orais ou escritas. Os povos indígenas do Canadá são exemplo disso. Somos as nossas histórias. A literatura cria um registo histórico não só das comunidades portuguesas fora de Portugal, mas também da forma como elas evoluíram (ou não). No lançamento do livro foi dito — e concordo — que os primeiros imigrantes portugueses no Canadá foram, em muitos aspetos, uma cápsula do tempo de Portugal. Havia um desejo de manter a cultura como forma de sobrevivência. A literatura permite iluminar esses primeiros tempos da emigração e explorar a tensão de construir uma nova identidade sem perder as raízes. Ser português no Canadá é diferente de ser português em Portugal, nos Açores ou no Brasil. As histórias ajudam a documentar essas diferenças e a ligar comunidades, mesmo através da ficção.

MS: Considera que há apoio institucional suficiente para os autores que escrevem sobre a experiência da diáspora portuguesa?

KP: Na minha experiência pessoal, recebi um apoio significativo. Estou atualmente a concluir um mestrado em Escrita Criativa na Universidade de Guelph, com várias bolsas que cobrem os custos dos estudos. Além disso, o meu romance — cuja personagem principal é filha de imigrantes portugueses — foi financiado pelo Conselho de Investigação em Ciências Sociais e Humanas do Canadá. No entanto, esta é a minha realidade como autora no Canadá. Ao mesmo tempo, os escritores continuam a ter de exercer outras profissões para sobreviver. São poucos os que vivem apenas da escrita. Por isso, continua a ser essencial financiar autores, especialmente os que partilham histórias que pouco foram ouvidas, como as da comunidade imigrante portuguesa.

MS: Que desafios enfrenta na divulgação dos seus livros junto das novas gerações de luso-descendentes?

KP: A divulgação é sempre um desafio. Com tantas histórias, revistas literárias e livros a serem publicados, como se destaca uma obra? É um problema transversal a todos os escritores, independentemente do género. A visibilidade é parte do desafio. Nasci em Toronto, vivi em Scarborough, mudei-me para London (Ontário) por motivos profissionais e agora vivo em Kitchener. Cada uma destas cidades tem a sua comunidade portuguesa, e muitas não conhecem o meu trabalho.

MS: De que forma os seus livros podem aproximar diferentes gerações da comunidade imigrante e reforçar o sentimento de pertença?

KP: As histórias sempre uniram as pessoas, promovendo empatia e compreensão pelas vivências dos outros. Espero que as minhas narrativas criem pontes entre gerações da comunidade imigrante. Que as novas gerações possam, através da leitura, perceber ou sentir o que os seus pais ou avós viveram ao chegar ao Canadá. E que os mais velhos reflitam sobre os desafios que os jovens enfrentam ao viver entre duas identidades. Mais do que isso, desejo que os meus livros inspirem outras histórias, mais partilhas, e incentivem um olhar honesto sobre a história complexa e, por vezes, desconfortável de Portugal enquanto país.

MB/MS

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