Barreiras estruturais impedem mulheres de assumir funções de liderança
O Canadá é o sétimo país com maior disparidade salarial por género numa lista de 29 países que foram examinados pela OCDE em 2019. Segundo a OCDE, países como Coreia, Japão e Israel têm uma grande disparidade salarial por género e o Canadá apresenta uma média de 16.7. Neste ranking Portugal surge na 19.ª posição, com cerca de 9.6 e a média dos países da OCDE corresponde a 12.9. Na Coreia, o país onde existe mais diferença salarial entre homens e mulheres a média ronda os 32.5. Países como Suíça, Alemanha e Reino Unido surgem no ranking imediatamente abaixo do Canadá com 15,1; 15,3 e 16.0, respetivamente.
De acordo com a Statistics Canada, uma mulher ganha em média no Canadá cerca de 75% por cada dólar que um homem ganha. O valor é relativo a um emprego a tempo inteiro. Quando as mulheres são newcomers (novas imigrantes), indígenas ou têm algum tipo de deficiência a diferença é ainda maior. O que significa que uma mulher demora em média 15,5 meses para conseguir ganhar o mesmo que um homem em 12 meses. Segundo o Ontario Gender Wage Gap Strategy Steering Committee, uma mulher que reside em Ontário ganha em média menos $7.200 por ano do que um homem com a mesma experiência, histórico socioeconómico e demográfico.
A questão da diferença salarial entre homens e mulheres começou a ser estudada quando a mulher começou a ter um trabalho remunerado tal como o homem. Aquela que foi uma das mudanças sociais mais dramáticas do século passado trouxe um problema que parece estar longe de ser resolvido. No Canadá, segundo estatísticas de 2015, cerca de 82% das mulheres tinham um trabalho remunerado, um aumento superior a 20% se comparamos com o início dos anos 80 onde apenas pouco mais de 65% das mulheres tinha um trabalho remunerado.
A desvantagem existe até nos próprios governos que continuam a ser ocupados maioritariamente por homens. Mas existem outras profissões onde um dos géneros tem uma posição maioritária. É o caso dos condutores de camiões no Canadá, que emprega 97% de homens, ou das educadoras de infância, onde cerca de 97% são mulheres. Mas a diferença salarial entre estas profissões é bastante diferente porque enquanto que um condutor ganha em média mais de $45.000 por ano, uma educadora de infância ganha no mesmo ano pouco mais de $25.000.
Setores como saúde, assistência social, restauração e hotelaria eram, em 2015, setores onde as mulheres correspondiam à maioria.
As mulheres canadianas são as que recebem mais salários mínimos e cerca de um terço ganha menos de $14.25 por hora, o salário mínimo na província de Ontário. Um estudo da Leger, a maior empresa de estudos e análise de mercado do país, que foi conduzido em 2019 refere que uma mulher canadiana ganha quase menos um quarto do que um homem. Ou seja, em 2019 as mulheres levaram para casa um salário médio de $51.352 enquanto que os homens ganharam $67.704, uma diferença de 24%.
Em entrevista ao Milénio Stadium, a professora de sociologia e diretora do departamento de investigação da Universidade de Regina, em Saskatchewan, Dra. Amber Fletcher, diz que as desigualdades de género no mercado de trabalho continuam bem presentes no Canadá sobretudo em alguns setores, e avança que aqui uma mulher ganha em média menos 13% do que um homem. Ao nosso jornal a investigadora alerta que a pandemia pode servir para reconstruir um país melhor e mais justo para todos, inclusive para as mulheres. Abaixo publicamos a entrevista com Fletcher que já foi consultora para as Nações Unidas.
Milénio Stadium: Os homens e as mulheres têm hoje trabalhos remunerados no Canadá, mas ainda existem diferenças de género?
Amber Fletcher: Os homens e mulheres participam no mercado de trabalho canadiano em taxas quase iguais, mas existem diferenças importantes na forma como os dois géneros participam nesse mercado. As mulheres têm muito mais probabilidades de ter trabalho a part-time do que os homens, devido à responsabilidade desproporcional das mulheres pelo trabalho doméstico e de cuidado infantil que não é remunerado. Em média, as mulheres continuam a fazer muito mais desse trabalho do que os homens. Portanto, as mulheres também podem ter menos probabilidades de aceitar empregos a tempo inteiro ou promoções no trabalho por causa das suas outras responsabilidades. As mulheres estão mais representadas em certos setores, como retalho e serviços sociais, enquanto que estão sub-representadas na manufatura e nas áreas designadas por STEM (Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemáticas). Ocupações dominadas por mulheres tendem a ser menos bem pagas do que aquelas que são dominadas por homens. Estes fatores, em combinação com outros (como sexismo e discriminação), causam uma diferença salarial significativa no Canadá, onde as mulheres ganham, em média, cerca de 13% menos do que os homens.
MS: Em 2007, o gabinete do Governo do Quebec tinha o mesmo número de homens e mulheres. Precisamos de mais mulheres na política para mudar as regras?
AF: É importante que os nossos representantes políticos sejam realmente representativos da população – o que significa números iguais de homens e mulheres, além de mais pessoas de grupos sub-representados, como indígenas, pessoas de cor e pessoas LGBTQ2+. Uma representação mais equitativa das mulheres é importante por muitas razões. Pessoas com experiências de vida e diversos conhecimentos vão trazer novas perspetivas para a política. Mulheres com funções importantes podem ser modelos importantes para mulheres e meninas porque podem ajudá-las a ver possibilidades para além das funções das mulheres que estão historicamente enraizadas. O que não significa que todas as mulheres políticas vão pensar ou agir da mesma maneira, mas podem trazer perspetivas e conhecimentos cruciais que podem desafiar o status quo que, até o momento, tem sido frequentemente baseado nas experiências e perspetivas dos homens. No entanto, também acho importante reconhecer que apenas criar mais oportunidades para as mulheres na política não vai aumentar automaticamente a sua participação. Precisamos de abordar barreiras estruturais que impedem as mulheres de assumir funções de liderança. É fundamental uma distribuição mais igualitária do cuidado e do trabalho doméstico. As mulheres políticas também enfrentam misoginia e ameaças violentas que podem desencorajá-las de assumir cargos públicos, portanto, é preciso abordar essa cultura profundamente enraizada de sexismo violento se quisermos que as mulheres ganhem e permaneçam na política.
MS: Mas existem diferenças entre setor público e privado?
AF: As mulheres estão mais representadas em empregos no setor público do que no setor privado. Isso pode ser devido às diferentes ocupações que mulheres e homens tendem a ter (por exemplo, mais mulheres em serviços sociais), ou pode ser o produto de diferentes esforços para aumentar a diversidade, as culturas do local de trabalho ou outras diferenças entre o público e o privado setores.
MS: Quais são as barreiras estruturais que impedem as mulheres de progredirem mais na carreira?
AF: A raiz do problema é social, cultural, política e económica. O status quo está profundamente enraizado. Ideologias e estereótipos de género continuam a existir – por exemplo, algumas pessoas ainda têm a crença incorreta de que os homens são “naturalmente” mais adequados para matemática e ciências e que as mulheres são “naturalmente” mais adequadas para cuidar. Essas crenças estão erradas. Essas crenças não são apoiadas por evidências. Em vez disso, são ideias que foram repetidas com tanta frequência que as vemos como “verdade”. As ideias são mutáveis e, de facto, as nossas ideias sobre género mudaram dramaticamente ao longo da história e da cultura. Quando começarmos a reconhecer que “do jeito que é” não é “do jeito que tem que ser”, podemos começar a mudar as nossas ideias sobre o que é possível. O próximo passo é a socialização, que inclui criar os filhos com ideias menos rígidas sobre género. De lá, talvez possamos mudar para um lugar onde as mulheres não experimentem ameaças violentas e misoginia se escolherem entrar numa profissão historicamente dominada por homens, como a política. A nível económico, temos todo um sistema que atualmente depende do trabalho não remunerado das mulheres para manter a força de trabalho em movimento. A pandemia mostrou-nos as consequências quando não existem creches disponíveis: os trabalhadores não podem trabalhar, as empresas fecham e as economias desaceleram. Então, se isso é o que acontece quando não temos creches, é óbvio que investir em creches com apoio público teria o efeito oposto: quando mais mulheres podem ir trabalhar porque têm creches, os benefícios económicos superam os custos.
MS: Segundo um estudo do RBC, a pandemia reduziu a participação das mulheres na economia para o nível mais baixo dos últimos 30 anos. Porque é que isto aconteceu?
AF: A pandemia expôs muitas desigualdades, incluindo desigualdade de género. O emprego feminino foi severamente afetado pelo encerramento de escolas e de creches. Quando a creche fecha e alguém tem que ficar em casa com as crianças, é muito mais provável que as mulheres fiquem em casa. Para as mulheres que mantiveram os seus empregos, mas que estão em teletrabalho enquanto cuidam dos filhos pode ser difícil ter um bom desempenho e continuar com a mesma produtividade, o que aumenta o stress nas mulheres. A pandemia expôs a desigualdade, mas também expôs a verdadeira importância dos cuidados infantis, da educação e da saúde – setores dominados por mulheres. Agora que mais pessoas entendem como as nossas escolas e lares de idosos são realmente importantes, talvez possamos reconsiderar a forma como valorizamos economicamente estas trabalhadoras.
MS: Como podemos voltar aos mesmos níveis antes da pandemia? O Governo tem um papel a cumprir? As mulheres precisam trabalhar juntas?
AF: Vejo a pandemia como um momento para repensar o nosso status quo, mas não acredito que devemos voltar ao “normal”. A pandemia permitiu-nos ver a desigualdade com mais clareza, pois alguns grupos (como mulheres, pessoas com rendimentos baixos, imigrantes e pessoas de cor) foram mais afetados pela pandemia do que outros. Para aqueles que negavam a desigualdade antes, é cada vez mais difícil negar agora. A pandemia também revelou o verdadeiro valor das profissões que atualmente são mal pagas e subestimadas – como aquelas (principalmente mulheres) que cuidam de nossos filhos e idosos. Sugiro que usemos o momento de pandemia para reconsiderar os nossos sistemas, estruturas e políticas, e para reconstruir de uma forma que funcione melhor para mais pessoas.
Joana Leal/MS
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