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“A cultura popular e a língua portuguesa são insuficientes quando se trata de atrair pessoas mais jovens” – Maria João Dodman

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Maria João Dodman é Professora Associada no Departamento de Línguas, Literaturas e Linguística da Universidade de York, em Toronto. Com um doutoramento em literatura portuguesa e espanhola pela Universidade de Toronto, Dodman ensina várias disciplinas de cultura, literatura e cinema no programa de Estudos Portugueses e Luso-Brasileiros da Universidade de York. Natural do Faial, Açores, Maria João Dodman emigrou para o Canadá em 1989 e ao longo da sua carreira de docente tem acompanhado a evolução da cultura e da identidade portuguesa em Ontário. Em entrevista ao Milénio Stadium, a docente lamenta que parte da comunidade viva um Portugal que já não existe e que com isso tenha impedido os mais jovens de se integrarem. Como solução Dodman diz que a comunidade deve estar disposta a aceitar outras formas de estar “mais inclusiva e moderna”.

Na celebração dos 69 anos da chegada dos primeiros portugueses ao Canadá a docente gostava que os portugueses fossem mais abertos às comunidades lusófonas “que têm uma presença forte em Ontário” e revela preocupação com a diminuição do número de matrículas nos programas de português que coloca o futuro da língua em perigo.

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Maria João Dodman é Professora Associada no Departamento de Línguas, Literaturas e Linguística da Universidade de York, em Toronto. Créditos: Revista Amar

Milénio Stadium: A comunidade portuguesa celebra hoje os 69 anos da chegada dos primeiros portugueses ao Canadá. Na qualidade de docente de uma instituição de ensino superior canadiana, como é que vê hoje esta comunidade?
Maria João Dodman: A nossa comunidade ainda se encontra naquilo a que eu gosto de chamar o “in-between”, nem totalmente integrada na paisagem canadiana, nem totalmente portuguesa uma vez que, e muito como em todas as outras comunidades étnicas, a nossa “vive” um Portugal que já não é o país de onde veio a maioria dos imigrantes originais. Portanto, enquanto comunidade que oscila entre o isolamento e a integração, entre a tradição e a modernidade, permanece num estado indefinido. Como tal, falta-lhe objetivos comuns e visão a longo prazo. Parece estar apenas em modo de sobrevivência.

MS: Diria que a cultura e a identidade portuguesa ainda estão bem vivas nas gerações atuais?
MJD: Nas gerações mais antigas a cultura e identidade populares portuguesas estão vivas. Nas gerações mais jovens, essa cultura ainda está presente, mas manifesta-se de formas diferentes à medida que estão mais integradas e a sua ligação a Portugal é mediada pela sua identidade canadiana. É híbrida, tal como a abordagem à língua, onde por vezes as palavras portuguesas são pimenta e o discurso de outro modo inglês. É evidente que nas associações portuguesas em geral, há uma ausência de membros mais jovens, uma questão que tem atormentado a comunidade durante décadas, e que embora a comunidade saiba que isto é um problema, não conseguimos ter conversas sérias e unidas sobre a integração dos jovens. Estas só podem acontecer se a comunidade estiver disposta a aceitar outras formas de estar de forma mais inclusiva e moderna. A cultura popular e a língua portuguesa são insuficientes quando se trata de atrair pessoas mais jovens.

MS: A procura pelas disciplinas de língua portuguesa tem aumentado ou diminuído na York University? Quem são os novos alunos?
MJD: A procura tem diminuído, mas isto está a acontecer em todos os cursos de humanidades e muitos programas de ensino de línguas encontram-se numa situação muito precária. A pandemia também contribuiu muito para esta diminuição. Esperamos que à medida que voltamos à normalidade, as nossas inscrições aumentem, mas a situação não é clara neste momento. Estimo que metade dos nossos estudantes têm ligações familiares a Portugal, mas também chegam à Universidade com “bagagem” que é por vezes difícil para eles dispensar. Muitas vezes só conhecem as celebrações religiosas e alguns aspetos da cultura popular. Muitos reproduzem efetivamente um discurso que é totalmente inapropriado para os dias de hoje: o mito das grandes “descobertas”, por exemplo, Portugal como potência colonial e o seu suposto espírito “civilizador”. Os nossos cursos desafiam os estudantes a compreender o passado de Portugal como uma nação escrava, uma sociedade dividida onde a elite que oprimia os pobres, onde a religião podia servir como instrumento de controlo e onde a ditadura fascista do século XX levou a nação para trás. Também desafiamos os estudantes a compreender as muitas “línguas portuguesas”, o português como língua mundial ao longo das ricas e diversas culturas lusófonas em todo o mundo. Estes são frequentemente novos tópicos para os estudantes que lhes permitem abordar a língua e a cultura com mais sensibilidade e conhecimentos sólidos. Os estudantes respondem bem à aprendizagem de abordagens académicas às culturas e línguas portuguesas e lusófonas. Apesar do nosso investimento em todo o mundo lusófono, também queremos atrair outros estudantes. Embora em pequeno número, temos estudantes de outras origens e etnias que vêm para o programa.

MS: Como é que podemos incentivar os jovens luso-canadianos a se identificarem mais com as suas raízes?
MJD: É muito simples, basta descartar tradições que são divisórias e excludentes. As atitudes coloniais, racistas e sexistas, por exemplo, não têm lugar na sociedade de hoje e não devem ser toleradas. Em vez disso, e embora reconhecendo que Portugal é de facto um país pequeno, devemos celebrar todo o mundo lusófono, e avançar com respeito uns pelos outros, onde todos nós temos um papel a desempenhar. A um nível mais prático, temos de nos desfazer imediatamente de jantares prolongados, muitas vezes proibitivos, e onde as habituais tropas coloniais são replicadas. Tais reuniões incluem frequentemente discursos políticos que apenas servem para manter o status quo das elites locais e não fazem nada para integrar a juventude. Como amante de animais, coloco esta questão à comunidade: poderão os nossos jovens, nascidos e criados aqui numa sociedade onde o mundo natural e animal deve ser respeitado, assistir a uma “matança de porco” ou a uma tourada? A resposta deve ser óbvia aqui. Acolhamos também as suas ideias e compreendamos que o acesso à cultura não requer fluência na língua portuguesa e, numa sociedade multicultural, temos de perceber que o inglês também nos pode servir bem no acolhimento dos outros.

MS: Hoje são poucos os portugueses que emigram para o Canadá. Por outro lado, a comunidade lusófona tem aumentado. Que novos desafios é que estes dados representam?
MJD: A falta de unidade é o nosso maior desafio. Mais uma vez, não quero parecer um disco riscado, mas devido ao passado colonial de Portugal, não só estamos divididos dentro, como também não estamos unidos com outras comunidades de língua portuguesa; as comunidades brasileiras ou angolanas, por exemplo, têm uma forte presença em Ontário e devemos alimentar mais laços com elas.

MS: Na semana passada comemorámos o Dia da Língua Portuguesa, a 4.ª língua mais falada do mundo. Mais de 280 milhões de pessoas, em vários continentes, falam português e no final do século estimam-se que sejam quase 500 milhões. Sendo que a maioria das comunidades imigrantes acabam por assimilar a língua e a cultura do país de acolhimento, que futuro é que traça para a língua portuguesa?
MJD: Mais uma vez, estas celebrações devem acontecer em unidade com outras comunidades de língua portuguesa. Fiquei surpresa por saber que recentemente tinha sido organizado um webinar intitulado “A Lusofonia, a CPLP e a importância da promoção da língua portuguesa no Canadá” e não ter havido promoção de tal evento nem pedido de participação dos programas de língua nas universidades. Pelo menos, nós na Universidade de York não fomos notificados ou convidados. O futuro da língua está em perigo, e creio que existem vários fatores. Um de perceção; que o mundo funciona em inglês e outras línguas não são assim tão importantes. Outra questão preocupante é que o português, apesar de ser uma língua mundial, não é visto como tal. Apesar das tremendas oportunidades, o Brasil, e outros países de língua portuguesa são vistos como destinos inseguros, atormentados pela pobreza e pelo caos económico. Cabe-nos a nós, coletivamente, mudar isso; precisamos de ser mais eloquentes quando os cortes nas línguas estrangeiras acontecem em todos os níveis de ensino. A nossa comunidade pode ser generosa e devemos investir no apoio financeiro a programas portugueses a todos os níveis também.

Joana Leal/MS

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