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Até o sucesso precisa de ser trabalhado

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Viajamos até ao período pós-ditadura em Portugal, altura em que o uso – ou abuso… – de drogas regista um aumento explosivo. Solto das “amarras” em que viveu durante 50 anos, o país mergulhou então numa grande crise social provocada pelos acompanhantes desta nova e tão desejada liberdade – os entorpecentes.

Como consequência, também as overdoses e os números de infeções pelo vírus HIV e outras infeções resultantes do hábito de partilha de seringas dispararam. Esta verdadeira epidemia levou a que Portugal chegasse a registar uma taxa de uso de drogas e de infeção por HIV bastante superior ao resto da Europa.

As medidas adotadas pelo novo governo, tais como a tolerância zero perante traficantes e consumidores – punidos pelo sistema penal caso fossem apanhados em flagrante – não pareciam surtir qualquer efeito – não realidade, ao número crescente de consumo, doenças e infeções acabou por se juntar a superlotação das prisões.
Até que, em abril de 1999 o país decidiu inverter o rumo tomado até então: a lei 30/2000 definiu a importante estratégia do país no combate às drogas, implementada dois anos depois. A “revolução” não se deveu propriamente ao facto de se descriminalizar o consumo de drogas – num que máximo 10 doses de uma determinada substância ilícita – mas sim ao entendimento e maior sensibilidade com que o problema foi tratado. Os dependentes deixaram de ser vistos e tratados como criminosos, passaram a ser incluídos no Sistema Nacional de Saúde para que pudessem tratar as suas doenças decorrentes do uso de drogas, foram ainda criados programas de apoio e tratamento e, até agora, um espaço de consumo supervisionado, apenas para citar alguns exemplos de medidas sociais que funcionaram como um plano de “redução de danos” e que, em conjunto com a lei, fez de Portugal uma referência mundial no que ao combate às drogas diz respeito: entre outros indicadores, podemos destacar a redução no consumo de heroína e cocaína, duas das substâncias mais problemáticas, e que de 104 novos casos de HIV por ano, em 1999, Portugal passou para uma contabilização de 4,2 infetados em 2015.

Já em 2021, o Índice Global da Política de Drogas colocava Portugal no terceiro lugar entre 30 países, numa avaliação feita numa perspetiva mais humanista e que teve em conta os critérios mais recentes da Organização das Nações Unidas. Ainda assim, nenhum país teve a pontuação perfeita, o que nos faz perceber que existe ainda um longo caminho a percorrer… e nem os casos de sucesso, como o português, se escapam. Organizações não-governamentais já alertaram para os cortes nos já escassos recursos e para a necessidade de se adaptar a lei e as medidas às novas realidades que vão surgindo com o passar dos anos. A evolução no combate ao uso de drogas e os desafios que ainda se colocam nos dias de hoje foram alguns dos temas abordados na entrevista que o SICAD concedeu ao jornal Milénio Stadium.

Milénio Stadium: Há cerca de 20 anos Portugal descriminalizou a posse e o consumo de drogas. Quais foram, na prática, as boas e más implicações desta mudança na lei portuguesa?
SICAD: A Lei 30/2000, que entrou em vigor em 2001, define “o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a assistência médica e social dos consumidores dessas substâncias sem receita médica” (art. 1º). Esta lei insere-se e confere coerência a um conjunto de políticas e medidas que caracterizam o “Modelo Português” na abordagem dos comportamentos aditivos e das dependências, privilegiando as intervenções desenvolvidas pelas áreas da saúde e sociais. Estabelece que o consumo, aquisição e posse para consumo pessoal é uma contraordenação, não é crime, desde que a quantidade envolvida não exceda o necessário para o consumo médio individual por 10 dias (o limite é estabelecido por lei, em tabela com os valores para cada substância).
As Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência – CDT especialmente constituídas para o efeito (Decreto-Lei n.º 130-A/2001, de 23 de abril), serviços do Ministério da Saúde, apoiados técnica e administrativamente pelo SICAD, asseguram a aplicação da lei, tendo como principal objetivo a promoção da saúde, a redução do consumo e a segurança das comunidades.

Para saber mais aceda à Lei da descriminalização através do link:

https://www.sicad.pt/BK/Institucional/Legislacao/Lists/SICAD_LEGISLACAO/Attachments/525/lei_30_2000.pdf

MS: Podemos afirmar que o que tornou o nosso país num caso de sucesso e também – ainda hoje – numa referência mundial foi, sobretudo, a forma como se passou a olhar e a tratar aqueles que faziam e/ou fazem uso destas substâncias?
SICAD: O sucesso do Modelo Português deve-se sobretudo a uma abordagem global e de resposta integrada aos problemas das pessoas que usam substâncias ilícitas. A descriminalização e o trabalho desenvolvido pelas Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência convivem com outras medidas e recursos: rede ampliada de atendimento público especializado (tratamento), respostas de redução de riscos e minimização de danos, prevenção primária e programas de reinserção social.
A definição das políticas tradicionalmente baseia-se na caracterização da situação do país, dada pelo sistema nacional de informações, fundamental para a tomada de decisões.
A estratégia política adotada em Portugal introduziu mudanças significativas na forma como a nossa sociedade enfrentava o problema, considerando o uso de drogas como um problema de saúde e a dependência como uma doença, multifatorial, que precisa de ser tratada e não punida.

MS: Consideram que o sucesso da aplicação desta lei está, em grande medida, relacionado com a implementação das medidas sociais adotadas?
SICAD: A nosso ver não existe linearidade entre os bons resultados que consideramos ter alcançado e uma medida apenas. Consideramos que foi muito importante o forte investimento político, resultado de uma situação dramática para muitas pessoas e famílias, e que resultou no desenvolvimento de respostas que de uma forma integrada foram dando resposta aos problemas. A cooperação intersectorial e o foco nas necessidades das pessoas consumidora, mobilizou a sociedade, incluindo o setor social e muitos empregadores, na procura de soluções e respostas.
A descriminalização foi uma medida que introduziu coerência no sistema de apoio, facilitando a adoção de medidas na área da redução de riscos e minimização de danos, encaminhando para respostas de saúde e sociais, consumidores que precisam de apoio. É um conjunto de políticas respeitadoras dos direitos humanos e da dignidade humana.
Mais se acrescenta que a coordenação nacional para os problemas das drogas e da toxicodependência, mais recentemente alargada aos problemas ligados ao álcool, mantém uma abordagem balanceada entre a oferta e a redução da procura.

MS: Podem explicar-nos, em traço gerais, em que consistem essas mesmas medidas?
SICAD: Ao longo dos anos, e considerando a resposta integrada aos problemas dos consumidores, sobretudo os que apresentam problemas de dependência com vulnerabilidades sociais associadas, em articulação com os serviços sociais e os direitos dos cidadãos, após um diagnóstico social, são identificadas as necessidades, que podem ser ao nível da habitação, formação, emprego ou de documentação e acesso aos serviços. Estas dimensões são trabalhadas pelas equipas de reinserção da rede pública de atendimento, mas também noutras respostas. Em tempos existiu um programa de descriminação positiva para o apoio ao emprego de utilizadores de drogas incluídos em programas de tratamento, o Programa Vida Emprego, recurso que se revelou muito útil para os consumidores, para os empregadores e para a redução do estigma associado à dependência.
O exercício dos direitos e dos deveres dos consumidores em recuperação era o objetivo da intervenção.

MS: Mesmo perante os números e provas dadas, muitas pessoas ainda se recusam a aceitar o sucesso desta medida. Conseguem perceber porquê?
SICAD: Não é líquido que haja muitas pessoas que se recusam a aceitar a descriminalização. A medida foi votada na Assembleia da República, tendo dividido os partidos entre os “a favor da medida” – basicamente partidos de esquerda e os “contra a medida” – partidos de direita. À época a descriminalização foi aprovada, com maioria. Cerca de 15 anos depois, os mesmos partidos de direita reconheceram publicamente, o seu sucesso.
Apenas há poucas semanas se levantou a questão de voltar a criminalizar o consumo na via pública, através de um autarca, constituindo um caso isolado nestes mais de 20 anos de descriminalização.
É consensual que, na última década, se assistiu a um desinvestimento na área e os indicadores atuais traduzem isso mesmo, um recrudescimento dos problemas associados ao consumo problemático, junto de grupos populacionais em situação de grande vulnerabilidade, alguns sem abrigo.
É uma situação difícil que importa enfrentar de forma equilibrada, usando a evidência científica e as melhores práticas nacionais e internacionais. Não concordamos que recuar seja a solução, antes pelo contrário.

MS: De acordo com a Organização Mundial de Saúde, entre 2000 e 2015 houve um aumento de 60% nas mortes relacionadas às drogas: no total, em 2015, lamentaram-se 450.000 mortes. O que poderá estar a falhar?
SICAD: Cada país tem a sua realidade. Em Portugal, no respeito pelos direitos humanos, ao considerar a dependência uma doença, facilitou-se o acesso a informação e aos apoio. Esta situação terá seguramente contribuído para um consumo mais informado, responsável, com menos riscos e mais saúde.
MS: Já em Portugal – e segundo o Relatório Anual sobre a Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependência em 2021, do SICAD – as mortes por overdose aumentaram 45% em 2021 face a 2020, sendo que o número de mortes por ‘overdose’ com cocaína (51%) foi o mais elevado desde 2009 – que conclusões podemos retirar deste e de outros resultados deste relatório?
SICAD: São flutuações que ainda não representam uma tendência, mas temos de estar atentos e procurar compreender as causas e encontrar soluções. Portugal é o país com a menor taxa de mortes por overdose na Europa, mesmo quando a qualidade dos registos e o número de exames toxicológicos efetuados em cadáveres continua a aumentar.
Todos os dias enfrentamos novos desafios, reconhecendo que haverá sempre aspetos a melhorar.

MS: Ainda há, portanto, um longo caminho pela frente no que à regulação das drogas e consciencialização de tudo o que tenha que ver com o tema diz respeito – não só em Portugal como (e sobretudo) no resto do mundo?
SICAD: A filosofia que subjaz ao nosso sistema é que a dependência é uma doença crónica recidivante, uma condição de saúde com a mesma dignidade de outras (nomeadamente as ocasionadas por outros comportamentos, como os alimentares). Há que contribuir para desvanecer a associação destes comportamentos aditivos aos conceitos de “pecado” ou de “vício”, e incluí-los decididamente na área da promoção de hábitos de vida saudável e conferir às pessoas que sofrem desta doença a mesma dignidade dos que sofrem de outras condições de saúde semelhantes. Houve progressos significativos na redução do estigma, mas ainda há muito por fazer.

Inês Barbosa/MS

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