Temas de Capa

As transparências e as opacidades da Igreja Católica

Padre Anselmo Borges, filósofo, teólogo e um homem que não se inibe ao expressar a sua opinião – muitas vezes dura – sobre a Igreja Católica, enquanto instituição. Acredita, no entanto, na ação corajosa do Papa Francisco que, na sua opinião, contra uma oposição feroz, tem conseguido instituir regras que podem mudar a face da Igreja sediada no Vaticano.

Após ter sido tornado público o decreto papal que ordena a abolição do sigilo que protegia os padres acusados de exercerem violência ou abuso sexual de menores, procurámos perceber com o Padre Anselmo Borges que efeitos práticos esta decisão poderá vir a ter não só na estrutura, como também na imagem da Igreja Católica. Trouxemos ainda para esta conversa o fenómeno de Fátima e a sua relação estreita com os mais altos interesses da Igreja Católica.

Em novembro de 2018, quando entrevistei o Pe. Anselmo Borges para uma outra edição do Milénio Stadium que teve como tema de capa, os negócios da Igreja, teve oportunidade de me dizer “a Igreja precisa de uma grande conversão. A grande tarefa do Papa Francisco é ver se converte cardeais, bispos etc., àquilo que ele já é – cristão”.

Padre Anselmo Borges

Milénio Stadium: Passado este tempo, mais de um ano, em que tanto aconteceu, tenho que começar por lhe perguntar – acha que os cardeais e os bispos já estão mais cristãos?

Padre Anselmo Borges: Não posso responder a perguntas que têm a ver com a vida de cada um, como é o caso da conversão a cristão, que tem de ser um esforço permanente.

O que me preocupa é a Igreja continuar centralizada, clerical, com pouca coragem para adaptar a linguagem e as estruturas aos novos tempos. Como é possível continuar a negar a possibilidade de ordenar homens casados ou a manter a desigualdade de direitos das mulheres na Igreja? A linguagem da liturgia e da pregação é abstrata ou ininteligível…

MS: Recentemente foram anunciadas pelo Vaticano “medidas radicais” relativamente à forma como a Igreja lida com violência e abuso sexual de menores. Entre as tais medidas anunciadas destaca-se a abolição da regra de sigilo pontifício que antes protegia os clérigos.

Na prática, o que vai mudar com esta decisão tomada pelo Papa? Podemos ver aqui sinais de efetiva mudança?

Pe. AB:  Esta decisão é fundamental, porque garante real colaboração com as autoridades legítimas civis, proteção das vítimas, garantia da pena. Isto é decisivo para que a Igreja se torne uma instituição verdadeiramente transparente. De facto, este rescrito, com a data do aniversário do Papa, faz com que, como explica o P. Hans Zollner, a documentação relativa às acusações e à investigação dos casos de abuso de menores pelo clero possa ser solicitada pela justiça civil não só à Santa Sé mas também às Dioceses e às congregações religiosas.

Por outro lado, muda o delito de pornografia infantil, fazendo passar à categoria de “delicta graviora” (delitos mais graves) a posse e a difusão de imagens pornográficas que envolvam menores, que eram os menores de 14 anos, e agora até aos 18 anos de idade.

MS: Lembro-me que o Pe. Anselmo apelidou a Cúria Romana, na entrevista a que já fiz referência, de “cancro da Igreja”, afirmando ainda que “ela é a maior fonte de oposição”. Como vai a Cúria Romana reagir ao decreto papal do início de dezembro passado?

Pe. AB: O Papa Francisco tem sido muitíssimo duro e claro com a Cúria. Basta ler os discursos por ocasião dos cumprimentos de Boas Festas no Natal. Chegou a dizer que ela sofre de esquizofrenia e que “a corte é a peste do Papado”. Neste Natal, avisou de modo frontal: “Hoje não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais escutados”. Mais: “Já não estamos num regime de cristianismo, porque a fé, especialmente na Europa, mas inclusivamente em grande parte do Ocidente, já não constitui um pressuposto óbvio, e ela até é frequentemente negada, gozada, marginalizada e ridicularizada”. Por isso, concluiu, citando o cardeal Carlo Martini, outro jesuíta, que foi arcebispo de Milão: “A Igreja anda com 200 anos de atraso. Porque não se mexe? Temos medo. Medo em vez de coragem? No entanto, o cimento da Igreja é a fé, a confiança, a coragem… só o amor vence o cansaço.

Mas estou convencido de que a Cúria acatará esta medida do Papa, tanto mais quanto eles não podem ignorar a pressão da opinião pública em relação a esta matéria da pedofilia na Igreja, no que ela significa de podridão.

MS: Esta decisão tomada pelo Papa mesmo no último mês do ano, foi talvez a que teve mais impacto mediático, mas ao longo deste ano, na sua opinião, o que há mais para destacar da atuação de Francisco?

Pe. AB: Em primeiro lugar, a Cimeira em Roma para tratar dos abusos sexuais de menores e pessoas fragilizadas, de que é resultado também esta nova medida. Destaco também o Sínodo para a Amazónia, no qual se estudou a possibilidade da ordenação de homens casados e da ordenação de mulheres como diaconisas e o estudo do lugar das mulheres na Igreja, em lugares cimeiros de decisão. Continuou a preparação para uma reforma funda da Cúria, embora muitos perguntem se ela é reformável. Sublinho ainda, na visita ao Japão, a condenação como “imoral” não só do uso, mas também da posse de armas nucleares.

Continuou a denunciar o sistema económico-financeiro vigente, causador de tanta injustiça, fome e sofrimento. Lembro que recentemente Bill Gates deu razão a Francisco, ao confessar: “A minha fortuna de 109 mil milhões de dólares demonstra que a economia não é justa”.

MS: O Santuário de Fátima é um dos locais de culto com maior número de peregrinos/ano, no mundo. O que significa para si Fátima, enquanto teólogo e homem de fé?

Pe. AB: A minha posição quanto a Fátima é sobejamente conhecida.

Para mim, é absolutamente claro que Nossa Senhora não apareceu aos pastorinhos em Fátima no sentido de aparecer físico. Isso é completamente claro, pois Nossa Senhora não tem um corpo físico que possa ser visto. Se tivesse aparecido fisicamente, todos a teriam visto, como, numa sala, se entrar alguém, todos os presentes veem essa pessoa. Mas, dito isto, não me custa nada admitir que os três pastorinhos fizeram uma verdadeira experiência religiosa, mas enquanto crianças e dentro do contexto da época: decorria a Primeira Guerra Mundial, havia a perseguição da Igreja… Por outro lado, as crianças ouviam em casa e na Igreja os pregadores das missões populares, que pregavam o medo e o terror do inferno… diga-me: que mãe mostraria o inferno a crianças de 10, 8 e 7 anos? Os pastorinhos ficaram com a vida tolhida.

Para mim, o milagre de Fátima são os milhões de pessoas que lá vão e lá encontram paz, resposta para os seus medos e as suas angústias. Eu concordo com Frei Bento Domingues quando escreveu que Fátima é o cais de todas as lágrimas dos portugueses. A nossa devoção religiosa está muito marcada pela imagem patriarcal de Deus, enquanto Pai, sabendo-se que tradicionalmente a imagem do pai estava associada à lei e a algum medo (as mães diziam aos filhos: “eu logo digo ao teu pai”, e os miúdos ficavam em sentido). Na religião também era assim. Deste modo, Nossa Senhora, representa o contraponto da mãe, o rosto materno de Deus. Ela é a mãe e o seu afago. É com ela que os fiéis desabafam, na certeza de que os entende na sua dor e sofrimentos. Sabe? Eu, por um lado, penso que é preciso “evangelizar” Fátima, portanto, acabar com o dolorismo que tanto tem estragado o cristianismo, mas, por outro, perante o sofrimento, inclino-me.

MS: Como reage quando dizem que Fátima e a história das aparições nasceram da necessidade que a Igreja tinha de voltar a ter uma ligação mais forte com o povo, numa altura particularmente complicada: pós- implantação da República?

Pe. AB: Como disse, Fátima tem o seu contexto, também essa realidade da República. Mas não creio que Fátima tenha sido uma mera invenção da Igreja. Pelo contrário, no princípio, alguns membros da hierarquia até se opuseram a Fátima.

                 Madalena Balça/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER