Temas de CapaAida Batista

As novas Penélopes

Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber. - Konstantínos Kaváfis (poeta grego)

Em março, a primavera faz-se anunciar pela forma como a natureza se desdobra em múltiplas manifestações de fertilidade. Mas não é por nenhuma associação à fertilidade feminina que o Dia Internacional da Mulher, por decisão das Nações Unidas, passou a ser celebrado, a partir de 1975 e em mais de 100 países, no dia 8 de março. 

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Crédito: Direitos reservados

No entanto, pensando na fertilidade como um conceito ligado à criação, então diremos que o mês foi bem escolhido, porque foi graças à luta de um grupo de mulheres corajosas que foram gerados direitos que, nascidos há pouco mais de um século, se foram desenvolvendo e ramificando ao longo dos últimos anos, embora a sombra da sua copa não chegue ainda a geografias onde tantas mulheres se sentem desprotegidas. 

Em anos anteriores, os dias de transição de fevereiro para março coincidia com o meu regresso das Correntes d’Escritas, grávida de emoções por tudo quanto havia vivido na Póvoa de Varzim. Este ano, na impossibilidade de terem ocorrido presencialmente, foi-nos dada a possibilidade de as seguirmos no aconchego das nossas casas, para onde a organização nos enviou tudo quanto digitalmente preparara durante meses de gestação, e que resultou num parto muito bem-sucedido. Na alcofa do enxoval, nenhuma peça faltou para vestir os dois dias a que estas Correntes ficaram reduzidas: Cerimónia de Abertura, Testemunhos, Exposições, Documentários, Conversas, e as sempre tão aguardadas Mesas a começarem pelos enigmáticos motes com que a Manuela Ribeiro armadilha os participantes, que se veem obrigados a encontrar a ponta do novelo com que terão de se desenvencilhar da frase ou do verso proposto.

Este ano outros fios se teceram numa instalação a que foi dado o título de “As Penélopes”, com que se pretendeu homenagear a tradição das mulheres poveiras, que, com lã branca, tricotavam camisolas bordadas depois a ponto cruz com motivos essencialmente marinhos. Na mitologia grega, Penélope era a mulher de Ulisses que, durante 20 anos, esperou que ele voltasse da guerra de Troia. Como principal figura feminina da Odisseia, Penélope é a metáfora da fidelidade conjugal, porque, apesar dos vários pretendentes que a assediavam, ela acreditou sempre no regresso do seu amado a Ítaca. Para justificar as recusas, perante um pai que a aconselhava a um novo enlace, urdiu um estratagema: apenas aceitaria voltar a casar-se depois de terminar a teia iniciada para o dossel funerário de Laertes, seu sogro. E Penélope tecia durante o dia, mas, para poder prolongar o tempo de espera e adiar a palavra dada, desfazia de noite o que fizera durante o dia. À semelhança de Penélope, também a vida da maioria das mulheres poveiras foi tecida de agulhas que tricotavam dias para desfazer as noites de ausências de seus maridos no mar, bordando-lhes saudades nas longas esperas que, por vezes, terminavam amortalhadas no fundo do mar.

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No caso da instalação organizada no âmbito das Correntes d’Escritas, os bordados escolhidos inspiraram-se em contos de escritoras convidadas, reunidos num livro que faz parte da exposição. Embora não conheça os textos das doze escritoras, apóstolas desta merecida homenagem às mulheres da Póvoa (estendida a tantas outras), não posso deixar de concluir que o título da instalação encaixa na perfeição na trama dos nós de que eram tecidas as vidas das mulheres poveiras – ausências constantes e permanentes esperas. 

Algumas mulheres que, no próximo dia 8 de março, forem celebradas serão já outras Penélopes – aquelas que, tecedeiras de futuros, alcançaram vidas autónomas, afirmando-se pessoal e profissionalmente no mercado de trabalho, como foi o caso das mulheres migrantes. Para as homenagear, encontra-se no prelo a coletânea “Menina e moça me levaram”, comemorativa dos 25 anos de vida ativa da Associação Mulher Migrante, onde teremos oportunidade de conhecer 44 narrativas de mulheres que passaram pelos mais diversificados processos migratórios. 

Das diferentes Ítacas onde estabeleceram os seus reinos, chegaram-nos testemunhos de policromáticas telas tecidas entre elas e os diferentes mundos por onde se ensarilharam as suas vidas. A viagem nem sempre lhes foi fácil. Tal como Ulisses, também elas passaram por esforçados trabalhos e provações. Alturas houve em que pediram para serem amarradas ao mastro da persistência para não se deixarem tentar pelo canto sedutor de sereias, em detrimento da resistência que a gesta lhes exigia. Todas elas estão a ser lembradas através das histórias de vida que nos inspiram e, como escrevi na nota de abertura, a quem ficamos inteiramente gratas: às que partiram e ficaram; às que partiram e voltaram; às que estranharam e depois se adaptaram; às que voltaram mas tornaram a partir; às que, como pássaros migrantes, voam entre dois ninhos numa dupla relação de pertença; às que escolheram o nosso país como segundo ninho; em suma, a todas as que, com os seus testemunhos, nos deram verdadeiras lições de como as mulheres se podem afirmar, pessoal e coletivamente, alicerçadas na força do querer e na vontade de triunfar.

Muitas delas permaneceram no anonimato. Daí ser imperativo evocar igualmente todas as que nos antecederam, mas viveram a gesta da e/imigração dentro de vidas que nunca foram contadas, nem sequer tiveram direito a uma nota de rodapé na Odisseia que ajudaram a escrever.

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