Temas de Capa

AS LINHAS INVISÍVEIS

Em novembro passado, estive no arquipélago de S. Tomé e Príncipe e visitei o Ilhéu das Rolas. Como o próprio nome indica, um ilhéu é uma pequena ilha, mas, no caso deste, um pedaço de paraíso banhado pelas águas quentes do Atlântico. Insisto na palavra “paraíso” porque este naco de terra não foi ainda abocanhado por qualquer sombra de poluição. A sua população vive numa plena relação com a natureza e do que esta lhes dá.

Os pequenos barcos de madeira, que diariamente ali aportam, vão carregados de turistas que a pé sobem o ilhéu com o fito de fotografar o padrão e a calçada, em cujo chão está um mapa-mundo. Nele figura a imaginária linha do Equador demarcada por gago Coutinho e que separa os dois hemisférios – Norte e Sul. A vontade de entrar no planisfério, e tirar uma fotografia com um pé em cada um deles, é prontamente materializada por todos os que lá vão, entre os quais igualmente me incluo.

Estas linhas há muito povoam o nosso imaginário e o ano, que há pouco terminou, remete-nos para uma outra que assinala a passagem do tempo. Quando na noite do dia 31 se ouve a última badalada da meia-noite há uma linha temporal que se cruza para podermos entrar em 2025. No momento em que abraçamos a garrafa de champanhe com as duas mãos, temos um pé em 2024 para, no segundo seguinte, e assim que a rolha estoirar, entrarmos em 2025. Basta que algum relógio não esteja sintonizado com os outros para que alguém se mantenha prisioneiro do ano anterior por mais algum tempo.

Portugal envergonhou-se. Aqueles corpos encostados à parede não eram criminosos, eram espelhos. – Dino de Santiago, cantor cabo-verdiano

Estas linhas do tempo e do espaço são invisíveis e vivem no domínio do abstrato das nossas construções mentais. É precisamente nesse domínio, o das construções mentais, que hoje se fala tanto de outras linhas – as chamadas linhas vermelhas – que entram numa outra ordem: a da moral. Ou seja, são um conjunto de linhas que não devem ser ultrapassadas sob pena de nos desumanizarmos. O perigo está em, de um momento para o outro, poderem deixar de ser vermelhas para adquirirem a alvura da normalidade.

Estou a referir-me, concretamente, ao que aconteceu na última semana do ano transato, quando a rua do Benformoso foi fechada e os seus habitantes encostados à parede, numa ação de fiscalização policial que chocou o país. A imagem, amplamente difundida, de imediato me remeteu para cenas de má memória, imortalizadas por fotografias, pela literatura e por filmes, que retratam pelotões de fuzilamento nos campos de concentração, numa associação cruel ao que de pior o ser humano é capaz de fazer. Pensei, também, no poema de Martin Niemöller em que se um dia chegasse a minha vez “Nessa altura, já não restava nenhuma voz, que, em meu nome se fizesse ouvir.”

Perante este cordão humano encostado à parede de um bairro paredes meias com a baixa lisboeta, eu diria que foi ultrapassada mais uma linha vermelha – a da decência! Por isso, ao pedirem-me que fizesse um balanço sobre o ano que terminou e as perspetivas do que se inicia, formulo votos para que não sejam ultrapassadas outras linhas da decência, estejam elas a ser traçadas onde estiverem, por não sabermos olhar para o “outro” como um ser humano com os mesmos direitos e garantias que queremos para nós, independentemente da cor da pele, do vestuário que usa, daquilo de que se alimenta, do cheiro que exala ou da religião que professa.

No dia em que todas as linhas da decência caírem, cai a linha que separa a civilização da barbárie e cairemos todos no chão da nossa vergonha onde já não restarão pedras para erguermos os valores do humanismo.

Aida Batista/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER