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ÁGUA: Riqueza limitada

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Água é sinônimo de vida. É um elemento natural indispensável à nossa sobrevivência e ao desenvolvimento das atividades humanas. Usamos água para diversas atividades corriqueiras como beber, cozinhar, lavar, limpar, fora os usos nos setores da agricultura e indústria. Porém, você já parou para pensar de onde vem a água que consome diariamente? Ou já imaginou as dificuldades que teríamos em viver sem, ou com esse recurso primordial de forma limitada?

Pois essa é a realidade que muitos países, inclusive europeus, já estão enfrentando e de uma maneira geral podemos dizer que o futuro da água, e consequentemente o nosso, estão em perigo. Fatores como o crescimento da população mundial, que exige mais produção de alimentos e energia, uso extensivo de água na agricultura e na indústria, mudanças climáticas que provocam desastres naturais, entre outros, colaboram para um crescimento desse estresse hídrico à nível mundial. A escassez desse bem pode provocar situações drásticas ao futuro da humanidade.

As previsões da ONU não são muito favoráveis e apontam que a demanda por água irá crescer cerca de 40% até 2050, altura em que calcula-se 25% das pessoas viverão em países sem acesso suficiente à água potável. Por isso o alerta de diversas entidades, ambientalistas e especialistas é o mesmo: é urgente que se revejam os usos de água no nosso planeta, porque ao contrário do que se pensa, esse é um bem renovável mas não é infinito.
Nessa edição do Milénio Stadium em que tratamos desse assunto, a crise hídrica mundial, estivemos à conversa com o professor Dr. Erich Keller, engenheiro civil, com doutorado na Área de Hidráulica e Saneamento, que discorreu sobre esse tema, nos apresentou a necessidade urgente de mudanças de hábitos sociais, e explicou qual a real viabilidade de algumas alternativas, tais como o reaproveitamento de água para determinados fins e processos como a dessalinização, entre outras questões.

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Erich Kellner, engenheiro civil, com doutorado na Área de Hidráulica e Saneamento. Créditos: DR.

Milénio Stadium: De uma maneira simples pode nos explicar como funciona o processo de tratamento da água? Ele difere muito entre países da América do Sul e do Norte?
Prof. Dr. Erich Kellner: A água que encontramos na natureza, ainda que seja considerada de boa qualidade, precisa ser submetida a um tratamento a fim de torná-la potável, ou seja, deixá-la em conformidade com os padrões de potabilidade estabelecidos. Em geral, cada país possui o seu padrão de potabilidade, o qual representa um conjunto de características físicas, químicas, biológicas e radiológicas específicas e estipuladas pelo Estado, de maneira a garantir que a água consumida não afete a saúde dos seres humanos. No Canadá, caso não esteja errado, o padrão de potabilidade data de 1968 e foi estabelecido pelo Federal Provincial Territorial Commitee on Drinking Water. Dessa maneira, a água para o consumo humano, ou água potável, deve atender aos padrões de potabilidade. Por outro lado, as águas que estão disponíveis nos mananciais (rios, lagos, reservatórios e nos aquíferos subterrâneos), podem sofrer variações em seus parâmetros de qualidade (oxigênio dissolvido, cor, turbidez, presença de coliformes termotolerantes, etc). Essas variações podem ser sazonais, como por exemplo, o aumento da turbidez dos rios após um período de chuva, ou mais duradouras, como por exemplo, o lançamento de despejos em corpos d´água sem qualquer tratamento, podendo aumentar a carga orgânica, a presença de algas e outros compostos. Assim, após essa introdução, pode-se dizer que o tratamento de água, que ocorre em uma Estação de Tratamento de Água, transforma a água encontrada no ambiente em uma água que possa ser consumida pelo ser humano sem expô-lo a riscos sanitários. Com isso, e de maneira geral, quanto menos poluído for um manancial, mais simples (e seguro) será o tratamento.
O tratamento da água em si, consiste então na aplicação de produtos químicos que permitam a eficiente aglutinação de partículas suspensas na água natural (processo de coagulação), a posterior formação de flocos (processo de floculação), processo este que tornam essas partículas mais pesadas e permitam ser removidas a partir da decantação da água (processo de decantação). Após essa etapa, a água, agora já com parte das partículas removidas, passa for filtros que podem conter areia, antracito ou mesmo carvão ativado (processo de filtração) a fim de reter as partículas finas ainda suspensas e, dependendo do meio filtrante, partículas e/ou contaminantes dissolvidos. Após essa etapa a água passa por um processo de Desinfecção, no qual recebe algum agente desinfetante (em geral cloro) a fim de assegurar que, ao longo do trajeto da Estação de Tratamento de Água até o consumidor final, haja alguma proteção contra possíveis contaminantes biológicos (fungos, vírus ou bactérias). Assim, para cada tipo de manancial, e a partir de suas características qualitativas, tem-se um tipo de tratamento.
Acredito que neste momento é importante considerar o chamado efeito de múltiplas barreiras, ou seja, criar condições que garantam a boa qualidade da água no manancial até chegar ao consumidor final. Assim, entendo que a proteção dos mananciais representa estratégia fundamental para evitar crises hídricas e de adaptação e mitigação de eventos climáticos extremos. Em geral, o processo de tratamento da água entre os países da América do Norte e da América do Sul não diferem muito, exceto pelos padrões de potabilidade estabelecido pelos países e pelas condições de variações de temperatura ao longo do ano.

MS: Pode nos citar alguns exemplos eficientes de sistemas de reaproveitamento de água que já estejam sendo usados mundialmente?
EK: De maneira geral, quando se fala em aproveitamento ou reaproveitamento de água temos que estabelecer o uso que se pretende dar. Por exemplo, captar a água da chuva em uma cidade com poluição atmosférica acentuada, pode resultar em água com uma série de contaminantes (que foram incorporados à água da chuva). Se essa água for reaproveitada para se lavar pisos ou mesmo dar descarga, não vejo problemas, porém, se for para dessedentação humana, deve-se lembrar que ela não é potável, ou seja, não atende aos padrões de potabilidade. No entanto, devo ressaltar que na região nordeste do Brasil, há um programa de implantação de cisternas muito interessante e que permite a obtenção de água em regiões áridas. As várias etapas do tratamento, acaba ocorrendo naturalmente em função da qualidade da água da chuva, sendo recomendável sua ingestão após passar por um filtro de água caseiro.
Outro exemplo, é com relação ao reaproveitamento de esgoto. Após o tratamento do esgoto, é possível atingir características que permitam, por exemplo, seu emprego na limpeza de vias públicas; sua aplicação na irrigação de parques públicos já dependeria de fatores como o tipo de planta a ser irrigada, o método de irrigação, e possibilidade de contato com o ser humano; já a reutilização do esgoto para o consumo direto, ou seja, da saída da estação de tratamento de esgoto para o sistema de abastecimento de água, é muito arriscado à saúde humana, pois durante todo o processo de tratamento, tanto do esgoto, quanto do tratamento de água, pode ocorrer uma falha no tratamento que pode por em risco a saúde de quem o consumir. Nesse caso, deve-se lembrar do conceito de barreiras, mencionado anteriormente. Nesse sentido, deve-se considerar o reuso de água como parte de uma atividade mais abrangente que é o uso racional da água, o qual compreende, o controle de perda de água dos sistemas de abastecimento, a minimização da produção de efluentes e do consumo de água. Assim, ao se pensar em reaproveitar a água deve-se juntamente pensar ou repensar o consumo de água que estamos fazendo. No Brasil, a reutilização da água (proveniente) do esgoto é muito pequena (em torno de 1% do esgoto tratado) e em geral, ocorre o reaproveitamento em âmbito industrial.

MS: A falta de água já é um problema que afeta diversos países. A dessalinização da água do mar pode ser considerada um método eficaz para lutar contra essa escassez? É eficaz?
EK: A falta de água é, de fato um grande problema e a dessalinização da água do mar pode vir a ser considerada. No entanto, ao se pensar em falta de água, é preciso pensar sobre a demanda que estamos impondo ou mesmo nas perdas físicas que ocorrem nos sistemas de abastecimento. A renda de uma família, por exemplo, é um dos fatores relacionados ao consumo de água, assim, em geral, quanto maior a renda maior será o consumo. Esse fator, por exemplo, recai sobre hábitos da população. O custo da água, também interfere no consumo. Com isso, pessoas com mais renda, podem vir a consumir mais água. Assim, é necessário rever nossos hábitos de consumo e repensá-los. Voltando ao tema sobre a dessalinização, é uma técnica que se apresenta como forma de utilização da água do mar. No entanto, como em todo o tratamento de água, há a formação de resíduos e no caso deve-se ter em mente o que fazer, ou onde armazenar o resíduo gerado do processo de dessalinização. Particularmente, vejo que o principal problema das tecnologias de dessalinização é conseguir diminuir o custo final da produção de água doce, para que esta possa estar disponível em quantidades suficientes até nas regiões onde é escassa. A dessalinização em grande escala, tipicamente, consome grande quantidade de energia e depende de plantas de produção caras e específicas. Portanto, é sempre mais cara, em relação a água doce de rios ou subterrânea.

MS: Como é possível garantir que a água que chega à casa das pessoas esteja livre de qualquer tipo de contaminação?
EK: A água após deixar a Estação de Tratamento de Água, passa por um longo caminho, passando por reservatórios e tubulações até chegar ao usuário. Normalmente, as empresas de saneamento responsáveis pelo tratamento e distribuição da água, devem garantir o padrão de potabilidade até o ponto de uso. Para isso, deve-se estabelecer pontos de monitoramento, onde são coletadas amostras e verificados vários parâmetros físico, químicos e bacteriológicos. A agressividade da água, por exemplo, pode interagir com o material da tubulação que transporta a água e conferir características que coloquem determinados parâmetros em atenção. Alguns municípios brasileiros, por exemplo, ainda possuem tubulações de cimento amianto em seu sistema de distribuição de água, o que podem conferir características não desejáveis a água. Assim, em geral, as companhias de saneamento elaboram planos e estratégias para substituição de tubulações, planos de monitoramento e/ou rastreabilidade da água produzida. Do ponto de vista microbiológico, é essencial que a água tratada possua um agente desinfetante, que representa a última barreira sanitária entre a água e o consumidor.
No entanto, vale um lembrete. As empresas de saneamento, em geral, responsabilizam-se pela qualidade da água até o ponto de consumo (entrada da local de consumo) e, em várias localidades é comum o uso de reservatórios domiciliares, os quais, muitas vezes, os moradores não se lembram de fazer a limpeza, e é um dos pontos que podem ocorrer a contaminação da água.

MS: A água é um recurso renovável, porém limitado. O seu uso vem aumentando consideravelmente e a escassez já é uma realidade em várias partes do mundo. O quão preocupados devemos estar em relação a isso?
EK: Em minha opinião, deveríamos estar mais preocupados do que nossas ações têm mostrado! É inegável a ocorrência das mudanças climáticas, e os eventos extremos têm se intensificado. O aumento das temperaturas, por exemplo, com a diminuição da umidade relativa do ar, faz com que o consumo de água naturalmente aumente. Ao mesmo tempo, os volumes de água perdidos pela evaporação, diminuem os níveis dos reservatórios, o que força a diminuição da capacidade de fornecimento da água. Isso se agrave se, a matriz energética empregada for baseada no sistema hídrico, pois, com a diminuição dos níveis dos reservatórios pode gerar diminuição ou impedimento de geração de energia, a mesma utilizada para acionar as bombas que transportarão a água dos mananciais até as unidades de tratamento. Há também a necessidade de mudança no sistema de gerenciamento dos sistemas de abastecimento de água (SAA). Atualmente os sistemas operam pela demanda (aumenta-se a necessidade de água, perfura-se novos poços). Talvez seja necessário atuar mais pelo consumo, mas não limitado unicamente ao fator financeiro (aumento das faixas de cobrança pelo consumo). Note que é inevitável a necessidade de nossa mudança hábito, de maneira a repensar nossas reais necessidades e buscando diminuir nossa pegada hídrica. Pensar sobre o ciclo de vida dos produtos e serviços que consumimos e o quanto eles dependem da água é um bom exercício para que possamos rever e/ou adaptar nossos hábitos. Temas como segurança hídrica associada às mudanças climáticas nos convidam a agir em relação aos recursos hídricos sob um olhar adaptativo, resiliente e de alteração de hábitos de consumo.

MS: Como podemos nos preparar para fenômenos climáticos como secas e cheias? Que medidas e que os governos devem tomar?
EK: Os fenômenos climáticos somados a ocorrência de fenômenos extremos devem afetar toda e qualquer sistema de produção. No setor de saneamento, deve ocorrer impactos significativos em todas as suas áreas: abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e manejo de águas pluviais e manejo de resíduos sólidos.
Ainda que todos essas áreas estejam inter-relacionadas , especificamente sobre os sistemas de abastecimento de água, os governos, como forma mais ampla dos detentores da titularidade dos recursos hídricos e dos sistemas de saneamento, precisam adotar medidas que busquem a redução de perdas, a eficiências nos sistemas de abastecimento de água, buscando atingir a universalização dos serviços de saneamento ao mesmo tempo de reduz o consumo de energia; proteção dos mananciais, foco na gestão por consumo e não na gestão por demanda; por outro lado, cabe a nós repensar os nossos hábitos de consumo e não somente de uma maneira individual, mas coletiva.

Lizandra Ongaratto/MS

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